Nossa palestra na Conferência Nacional dos Cartórios em Foz do Iguaçu em 2018
Olá, meus amigos e minhas amigas.
Tivemos a
oportunidade de falar um pouco sobre os limites jurídicos do empreendedorismo
pelos serviços notariais e de registro (os populares cartórios) e sobre a
relevância dessas instituições para a sociedade. Deixo abaixo um texto com a
minha palestra, embora, como não reduzi a exposição a leituras, mas preferi
conversar com o público livremente, o referido texto apenas contém as ideias
principais que, durante a palestra, externei aos colegas.
Deixo também uma foto com a programação do
Congresso, que realmente foi muito rico em ideias.
Veja o texto ao final deste post.
Abraços
Carlos E Elias
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CONFERÊNCIA NACIONAL DOS CARTÓRIOS (26 a 28 de abril de 2018, Foz do Iguaçu)
Tema
principal: Cartório Contemporâneo: quebrando paradigmas para a evolução do
serviço notarial e de registro.
Sub-tema:
Cartório-Empresa: empreendedorismo e gestão de pessoas.
“Os cartórios precisam constantemente se reinventar ou – para
lembrar o título deste Congresso em Foz do Iguaçu –quebrar paradigmas, ainda
que isso signifique abandono radical de concepções até então consolidadas.
O fluxo do rio nos ensina muito. A pacificidade da corrida das
águas é, por vezes, rompida por cascatas vorazes ou até mesmo por violentas
cataratas que, apesar de sua explosão, oxigenam as águas para que elas possam
seguir estáveis em um novo rumo. A escolha da cidade da Catarata do Iguaçu como
lugar para sediar este Congresso Nacional dos Cartórios e para tratar desse
tema de “quebra de paradigmas pelos cartórios” talvez tenha, no fundo, um valor
simbólico.”
Ideias-chave: Importância dos serviços notariais e de registro.
Necessidade de adaptação às mudanças sociais. Identificação de novas
necessidades da sociedade e do mercado que podem ser emolduradas em um dos
atos-fim dos serviços notariais e de registro (plasticidade). Limites dos
atos-meio. Casos especiais: arbitragem, mediação, marketing, descontos, parcelamento de emolumentos, “comissões” por indicação
de clientes.
1)
SAUDAÇÕES
- aos
integrantes da mesa;
- ao
presidente da Confederação Nacional de Notários e Registradores – CNR, Dr. Rogério
Portugal Bacellar;
- à
ex-presidente da ANOREG/BR, Dra. Léa Emília Braune Portugal
- aos
organizadores, com destaque para a caríssima Sra. Fernanda da ANOREG/DF.
- a todos os
presentes e a outros oficiais que não puderam estar presentes.
2)
IMPORTÂNCIA
CONTEMPORÂNEA DOS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO E EXCELÊNCIA INTELECTUAL DOS
TITULARES
Os
serviços notariais e de registro, popularizado pelo epíteto “Cartórios”, estão
entre as instituições mais relevantes do nosso Estado de Direito.
Mais do
que simples agentes públicos, os oficiais extrajudiciais foram ungidos pela
nossa Constituição para distribuírem a fé pública nos principais atos e fatos
jurídicos relevantes aos indivíduos, ao mercado e ao Estado.
O Brasil,
em conjunto com inúmeros outros países – como a Alemanha –, tem o privilégio de
contar com essa estrutura de certificação dos fatos jurídicos, o que é
relevante para prevenir fraudes em negócios, para distribuir cidadania aos
indivíduos por meio de documentos de identificação, para viabilizar a cobrança
de créditos por caminhos não abusivos, para confortar o espírito dos
proprietários de bens ou dos titulares de garantias reais, etc.
No caso,
por exemplo, do registro de imóveis, o modelo brasileiro desperta a atenção de
outros países. A própria China estava a estudá-lo com vistas a importar esse
modelo[3].
Frequentemente,
ouvem-se apressados e impensados discursos contrários aos cartórios,
imputando-lhe o deslocado insulto de ser um arauto da burocracia, do
medievalismo, do subdesenvolvimento e de engorduramento de despesas. Os atabalhoados
interlocutores que ressoam esses zunidos chegam a remeter-se ao modelo dos
Estados Unidos, defendendo que lá não há cartório de imóveis e que, apesar
disso, os negócios imobiliários não sofreriam riscos nem seriam encarecidos com
emolumentos.
Trata-se
de ruídos que a realidade vêm progressivamente silenciando. Pouco tempo de
estudo específico dos sistemas de registros públicos no mundo seriam
suficientes para, com um simples sopro, desabar o castelo de baralhos dessas
críticas.
Em
primeiro lugar, o modelo norte-americano para transações imobiliárias é muito
mais caro e inseguro do que o brasileiro. O jurista espanhol José Luiz La Cruz
Berdejo, em sua obra “Derecho Inmobiliário Registral – III bis”, faz
aprofundado passeio nos sistemas de registro de imóveis existentes no mundo e,
ao tratar do sistema norte-americano, esclarece que a falta de certeza da
titularidade dos imóveis gera um risco muito grande em qualquer negócio
imobiliário, seja os de venda, seja os de oferecimento de garantias reais. A
possibilidade de um terceiro reivindicar o imóvel com base em um título mais
robusto é séria, ocasionando o indesejado fenômeno da “evicção”. A consequência
desse frenesi é que os negócios imobiliários devem ser acompanhados da
contratação de onerosos seguros, de maneira que, se vier a ocorrer a evicção, o
prejudicado será indenizado pela seguradora. Além disso, há gastos expressivos
com a contratação de advogados incumbidos de tentar reduzir os riscos de evicção
e de redigir o contrato.
O sistema
norte-americano não resiste a um simples teste lógico. É absolutamente
despropositada a sua inércia em enfrentar a raiz do problema da insegurança
informacional. Prefere-se garantir ao adquirente de um bem o direito a uma
indenização securitário em razão da evicção no lugar de combater a fonte dos
problemas, que é a falta de certeza da titularidade dos imóveis. Não é racional
deixar de combater uma doença para, no lugar disso, fazer um seguro de vida a
fim de garantir uma indenização no caso de morte. A evicção é uma morte; causa
prejuízos irreparáveis pelo dinheiro a quem a sofreu. Nada indeniza a dor
decorrente da perda de um imóvel onde uma família já está confortada.
La Cruz
Berdejo não precisou ser textual. A insinuação foi suficiente. O sistema
irracional dos EUA baseado em apólices de seguros só se mantém por força do
possante lobby das seguradoras.
O sistema
brasileiro dos serviços notariais e de registro é menos oneroso e largamente
mais seguro, o que é salutar para o ambiente de negócios.
Diante
disso, indaga-se: por que havia e, ainda que em estado de obnubilação, ainda há
vozes críticas ao sistema cartorial brasileiro?
A resposta
desbordaria os limites desta palestra, mas podemos resumi-la aqui.
A atuação
coordenada dos titulares de serviços notariais e de registro, migrando de uma
postura atomizada para uma visão molecular da sua atividade, é relativamente
recente. A preocupação em promover integração, virtualização e eficiência no
serviços ganharam amplificação nas últimas décadas.
Ora, os
serviços notariais e de registro precisam estar em sincronia com a necessidade
da sociedade e do mercado. Eles nasceram a pedido da sociedade. No caso do
Registro de Imóveis, por exemplo, o seu embrião foi o Registro Hipotecário
fundado pela Lei Orçamentária nº 317/1843, fruto da súplica que o mercado fazia
para ter segurança informacional sobre as titularidades dos bens. O povo – de
quem todo poder emana – é o excelentíssimo destinatário desses serviços.
As
necessidades do mercado e da sociedade mudam, estão em constante movimento. Os
cartórios também precisam acompanhar essas mutações, sob pena de os seus
usuários passarem a refletirem em outras soluções que, muitas vezes, acabam configurando-se
como verdadeiras aberrações ou gambiarras jurídicas que podem comprometer bases
fundamentais do Estado de Direito. Os cartórios não podem abandonar a sociedade
na sua jornada inexorável de mudanças constantes, deixando-a desamparada diante
do “novo”. A estabilidade presume movimento; a permanência das instituições
pressupõe que a sua adaptação às modificações sociais e mercantis.
Nesse
contexto, quer-nos parecer que figuras como a negativação do nome dos devedores
por meio de instituições privadas não se alinham a um dos perfis do Estado de
Direito: a monopolização da violência pelo Estado (e os meios coercitivos de
cobrança são espécies de exercício de violência). Esses arremedos foram filhos da
inércia dos serviços de protestos em adequarem-se à dinâmica das cobranças de
crédito. Há também outras instituições a ameaçarem os serviços de registros
públicos, assumindo funções de registros de direitos para suprir a orfandade causada
pela indiferença de serventias registrais no tempo.
É claro
que não se pode deitar a culpa nos ombros dos cartórios, pois, como as suas
atividades dependem de suporte legal, é necessário que o legislador esteja com
olhar atento no aproveitamento eficiente da estrutura notarial e de registro.
Todavia, a atuação molecular dos cartórios no sentido de esclarecer a natureza
e a importância de suas atividades é fundamental para combater essas
insuficiências normativas.
Os
cartórios precisam constantemente se reinventar ou – para lembrar o título
deste Congresso em Foz do Iguaçu –quebrar paradigmas, ainda que isso signifique
abandono radical de concepções até então consolidadas.
O fluxo do
rio nos ensina muito. A pacificidade da corrida das águas é, por vezes, rompida
por cascatas vorazes ou até mesmo por violentas cataratas que, apesar de sua
explosão, oxigenam as águas para que elas possam seguir estáveis em um novo
rumo. A escolha da cidade da Catarata do Iguaçu como lugar para sediar este
Congresso Nacional dos Cartórios e para tratar desse tema de “quebra de
paradigmas pelos cartórios” talvez tenha, no fundo, um valor simbólico.
E aqui
adentramos o ponto nevrálgico de nossa exposição: quais são as margens de
manobras de que podem valer-se os serviços notariais e de registro para
adaptar-se aos novos reclamos sociais? Os cartórios teriam a mesma elasticidade
das empresas? O empreendedorismo e a gestão de pessoas podem ser orquestrados
sob o mesmo timbre das atividades empresariais?
A resposta
não é cartesiana.
Por serem
frutos de delegação do Poder Público e pelo fato de o seu exercício ocorrer de
modo privado, os cartórios vacilam entre o regime do Direito Administrativo e o
regime da inciativa privada. O art. 236 da Constituição Federal e a Lei nº
8.935/1994 criaram esse ambiente jurídico movediço. A linha divisória é
cinzenta e embaça a visão dos juristas e dos profissionais ao se atreverem a
delinear as extremidades do campo de manobra das serventias extrajudiciais.
A imprecisão
jurídica é mais acentuada do que isso. Lembramos que a própria ciência jurídica
é marcada pela imprevisibilidade. Recásens Siches afirmava que a lógica do
Direito não é a do racional, e sim a do razoável. Miguel Reale realça que, além
de o objeto do direito ser multifário (direito é fato, valor e norma, conforme
a teoria tridimensional do direito), o agente que o maneja também é volátil por
ser influenciado por sua história, sua experiência e sua cultura (culturalismo
jurídico). Mangabeira Unger, como profeta da descrença de uma ciência jurídica
cartesiana, chegava a afirmar que direito é, na verdade, política.
Daí que
precisamos ter algumas cautelas ao tratarmos da necessidade de os cartórios –
peço licença novamente para reportar ao tema deste Congresso – quebrarem
“paradigmas para a evolução do serviço notarial e de registro”.
Antes de
tudo, em uma simplificação, podemos sistematizar o regime jurídico híbrido dos
serviços notariais e de registro da seguinte forma: o ato-fim é regido por
Direito Administrativo, ao passo que os atos-meio, por Direito Privado. Detalhemos
essa asserção.
3)
ATOS-FIM:
TAXATIVIDADE VS PLASTICIDADE
De um
lado, os atos-fim da serventia se submetem às normas de Direito Administrativo
e, portanto, configuram atos administrativos. A lavratura de uma escritura, o
registro ou a averbação de um título, o reconhecimento de firma e outros
atos-fim constituem atos administrativos e seguem as regras do Direito
Administrativo. Por exemplo, o ato de registro na matrícula de um imóvel é um
ato administrativo vinculante, de sorte que, se o título preencher todos os
requisitos legais, o oficial é obrigado a praticar o ato.
Outra
consequência da natureza de ato administrativo dos atos-fim praticados pelas
serventias extrajudiciais é que o oficial não tem liberdade para criar, sem
base legal específica, novos atos. O cartório não pode oferecer “produtos” não
previstos em lei. Não há uma livre-iniciativa plena aos oficiais. O princípio
da legalidade no Direito Administrativo é estrita: tudo é proibido, salvo o
permitido em lei. Os atos-fim são taxativos.
Dessa
taxatividade não decorre, porém, que o cartório esteja engessado para aumentar
o consumo dos produtos disponibilizados, pela lei, nas suas prateleiras da fé
pública. A criatividade empreendedora do cartório pode aproveitar as necessidades
da sociedade que estejam sem o devido tratamento e que poderiam ser atendidas
por meio de um dos produtos dos serviços notariais e de registro. Trata-se da
plasticidade que, em diferentes graus, os atos-fim possuem. Alguns possuem
plasticidade praticamente zero, como, por exemplo, o registro de nascimento.
Outros atos, porém, possuem ampla plasticidade, a exemplo das atas notariais,
que vêm sendo progressivamente mais utilizadas para a certificação de fatos com
os mais diversos objetivos, especialmente para fins de servir de prova em
processo judicial.
Uma outra
tentativa de exploração da plasticidade dos atos-fim foi a divulgação feita por
alguns cartórios brasileiros no sentido de fazer uma espécie de “carteira de
identificação dos animais de estimação dos interessados”. Apesar dessa alcunha,
esse produto nada mais era do que um ato de registro de documentos no Cartório
de Títulos e Documentos, com a diferença de que, no documento, estariam
consignadas as principais informações do animal de estimação e estaria aposta,
até mesmo, a dócil imagem do pet.
Outro
exemplo é a permissão que o Provimento nº 67, de 26/03/2018, do CNJ, regulamentou
a atribuição dos tabelionatos de notas em poderem oferecer serviços de
conciliação e de mediação. Aproveitou-se aí da sua competência de lavrar
escrituras públicas para, criativamente, autorizá-lo a contribuir na
conciliação ou na mediação. Há restrições e detalhamentos no referido
provimento, mas se intui que aí se elasteceu criativamente a atribuição dos
oficiais em lavrar escrituras públicas.
A
exploração da plasticidade dos atos-fim deve ser feita com respeito à lei. Não
se pode, porém, admitir que negócios jurídicos nulos passem a ser objeto de
atos notariais ou de registro. O oficial extrajudicial, antes de tudo, tem o
dever de garantir a profilaxia jurídica dos atos jurídicos. Deve ele ter a
postura de negar, por exemplo, lavrar uma escritura pública quando, à luz da
legislação, houver alguma nulidade.
Pode-se
questionar se o oficial extrajudicial, com interesses meramente lucrativos,
poderia ter uma tendência espúria em flexibilizar a interpretação jurídica ou
em fazer vistas grossas com o objetivo de maximizar a quantidade de atos
praticados. Essa suspeita, porém, é descabida em razão da própria estrutura de
funcionamento dos serviços notariais e de registro. Além de os titulares
extrajudiciais serem selecionados mediante concurso público, eles são agentes
públicos sujeitos a fiscalizações constantes do Poder Judiciário e vulneráveis
ao duro ambiente sancionador do Direito Administrativo envolvendo ações de
improbidade administrativa e crimes contra a Administração Pública. O oficial
extrajudicial é imparcial. Abusos e exceções, evidentemente, sempre haverá,
como, de resto, há em qualquer categoria de agente público. Todavia, conforme o
Ministro Ayres Brito reiteradamente afirmava nas sessões do Supremo Tribunal
Federal, “não podemos proibir o uso presumindo o abuso”.
Portanto,
diante da taxatividade dos atos-fim dos serviços notariais e de registro,
cumpre-lhes explorar a plasticidade desses atos, valendo-se da criatividade
para, dentro da lei, passar a deitar a tinta da fé pública sobre necessidades
sociais ou mercantis até então desguarnecidas.
Além do
mais, evidentemente, o legislador pode ampliar a competência dos serviços
notariais e de registro, criando, por lei, novos atos típicos a serem
praticados pelos serviços notariais e de registro.
4)
ATOS-MEIO:
uma liberdade empreendedora com limites
De outro
lado, os atos-meio não podem ser considerados atos administrativos. São atos
meramente privados. Os contratos celebrados pelo oficial para o funcionamento
das serventias, como os de locação do imóvel da sede, os contratações de
escreventes, as aquisições de materiais de expediente etc., são atos meramente
privados, sem caráter privado.
Daí por
que é totalmente descabido transportar para esse âmbito amarras próprias do
regime de Direito Administrativo, como a proibição de nepotismo, a
obrigatoriedade de licitação, a extensão do teto remuneratório do funcionalismo
público para os rendimentos do titular[4]
etc.
Vige,
nessa seara de direito privado, o princípio da legalidade ampla: tudo é
permitido, salvo o proibido em lei.
O que
causa, porém, certa confusão é definir o que a lei proíbe nesse âmbito. A entropia
se acentua em saber se, para esse efeito, temos de admitir ou não proibições
implícitas da lei, assim entendidas aquelas que, embora não tenham previsão
textual, são inferidas da lei ou de princípios.
O tema não
comporta respostas apodíticas. A complexidade do casuísmo frustra a busca por
certezas. Como lembra Boaventura de Souza Santos, vivemos em um mundo de
perguntas fortes e de respostas fracas.
É preciso,
porém, tomarmos uma decisão, pois a segurança jurídica é um pilar do Estado de
Direito. Decisões devem ser tomadas com audácia, ainda que posteriormente surjam
elementos que recomendem mudança de entendimento. O risco de errar também é o
risco de acertar.
Especificamente
nos casos dos serviços notariais e de registro, entendemos que os atos-meio
podem ser censurados não apenas por leis textualmente expressas, mas também por
inferências implícitas de leis ou de princípios. Essa inferência tem de ser
inequívoca e excepcional; não se pode banalizar.
O Poder
Judiciário, em regra, tem competência para fiscalizar não apenas os atos-fim,
mas também os atos-meio, para garantir a regularidade operacional da serventia[5].
Todavia, é preciso definir os limites da competência fiscalizadora dos
atos-meio. O Poder Judiciário, por exemplo, evidentemente não pode censurar
opções de compras de material expediente, determinando, porém, a compra de
canetas de uma outra marca. Ele pode, porém, censurar que as grafias feitas a
caneta constantes dos papéis padeçam de ininteligibilidade e determinar que o
oficial resolva esse problema.
Convém
explorar alguns casos.
5)
CASO DO
MARKETING
Um
primeiro caso diz respeito aos limites de marketing
das serventias. Inexiste previsão textual na legislação federal impondo limites
publicitários aos serviços notariais e de registro. Daí se reconhecer que as
serventias podem divulgar os seus serviços com o objetivo de aumentar a
quantidade de usuários dos seus serviços. Esse direito de divulgação, porém,
tem limites. Entendemos que o limite é a vedação ao abuso de direito, condenado
pelo art. 187 do Código Civil. Considera-se abuso de direito o exercício do
direito além dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, pela função
social e pela finalidade econômica. O conceito de abuso de direito é muito
aberto, de modo que, para a sua configuração, é preciso analisar a natureza e o
contexto do direito. Além do mais, também é possível inferir que, como é dever
do oficial “proceder de forma a dignificar a função exercida” (inciso V do art.
29 da LNR) e como é infração disciplinar adotar “conduta atentatória às
instituições notariais e de registro” (art. 31, II, da LNR), é implícito que os
meios de marketing não podem ser banais.
Como se
sabe, os serviços extrajudiciais consistem em serviço público exercido por
particular por meio de delegação do Poder Público, de maneira que o direito de marketing do particular deve coadunar
com a discrição dos serviços públicos e com o respeito ao sistema de
viabilidade econômica do regime concorrencial das delegações. Assim, quando se
tratar de especialidades extrajudiciais sujeitas a competição entre si diante
da falta de delimitação territorial de sua competência, extravagâncias
publicitárias de uma serventia pode ocasionar a captação abusiva de clientela
das outras serventias, comprometendo a própria viabilidade financeira destas e
prejudicando a população, que precisa de serventias próximas de sua residência.
A concorrência predatória entre as serventias é nociva ao sistema de delegação.
Ao se cuidar, porém, de especialidades extrajudiciais sem potenciais conflitos
concorrenciais diante das restrições territoriais de sua competência, a
tolerância com técnicas de marketing
parecem ser mais adequadas por dificilmente configurarem abuso de direito.
A
subjetividade inerente ao conceito jurídico indeterminado de “abuso de direito”
inevitavelmente causará divergências de interpretações entre os Estados,
conforme a interpretação adotada pela Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal
local. A divergência só seria eliminada com a intervenção uniformizadora por
parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
De
qualquer forma, no Distrito Federal, por exemplo, a Corregedoria-Geral de
Justiça[6]
posiciona-se no sentido de proibir marketing
não discretos e com forte apelo de captação de clientes. Propagandas
publicitárias feitas com sobriedade, com fins informativos e sem fortes apelos
de captação de clientela é admitida na internet (redes sociais, e-mails etc.).
É vedado, porém, propagandas por placas, banners, outdoors, anúncios em meio de
radiodifusão (rádio, TV, rádio etc.) ou outro meio não razoável. É proibido
também marketing por meio de
patrocínios feitos em troca da divulgação da marca.
Ao nosso
sentir, a Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça da capital federal
(TJDFT) adotou postura adequada, podando abusos de direito de marketing pelas serventias.
Por fim,
não enxergamos restrições em que as associações dos oficiais promovam marketing dos serviços notariais e de
registro, valendo-se dos meios que lhes aprouver, pois a associação é entidade
privada imune a fiscalização do Poder Judiciário.
6)
CONCESSÃO
DE DESCONTOS E PARCELAMENTOS
Outro
problema é definir se os cartórios podem conceder descontos ou parcelamento nos
emolumentos.
Não há
texto legal expresso a propósito, mas a disciplina legal dos emolumentos, que
são tributos e que são previstos em lei, deixa a forte inferência de que o
desconto é proibido. Além do mais, é implícita a vedação de descontos na
obrigação de “observar os emolumentos fixados para a prática dos atos”,
conforme o inciso VIII do art. 30 da LNR. Há relativo consenso sobre essa
proibição da concessão de descontos.
A
controvérsia, porém, fica para a possibilidade de permitir que o usuário faça o
pagamento parcelado dos emolumentos. A rigor, sob uma ótica econômica, o
parcelamento de uma dívida é uma espécie de desconto indireto se não forem
cobrados juros remuneratórios. Todavia, sob um juízo de razoabilidade, o
parcelamento do pagamento dos emolumentos é salutar para o usuário, pois o
estimulará a levar o seu ato à formalidade dos serviços notariais e de
registro.
Provocada
pela Anoreg/DF, a Corregedoria-Geral de Justiça do TJDFT enfrentou essa questão
e, acolhendo sugestões da própria Anoreg/DF, passou a autorizar os cartórios a
aceitarem, se quiserem, o pagamento dos emolumentos de modo parcelado, mas,
para evitar eventuais concorrências predatórias entre as especialidades, impôs
o seguinte limite: para as serventias em regime de concorrência por falta de
delimitação territorial de competência (como o tabelionato de notas), só se
admitem 3 parcelas; para as demais serventias, não há limites. Os cartórios, de
qualquer sorte, só podem aceitar esse parcelamento por meio de pagamento em
cartão de crédito e jamais poderão repassar aos usuários as tarifas cobranças
pelas administradoras de cartão de crédito.
Seja como
for, nos Estados em que o oficial tem a obrigação de fazer repasses de parcela
dos emolumentos para outras instituições (como para fundos vinculados ao Poder
Judiciário), o oficial não poderá parcelar o repasse por falta de previsão
legal.
7)
CONTRATAÇÃO
DE “CORRETORES” PARA CAPTAÇÃO DE CLIENTES
Outro
aspecto é saber se o oficial pode contratar “corretores” que, não sendo
funcionários da serventia, incumba-se de buscar clientes para a serventia em
troca de uma “comissão” ou de uma “taxa de indicação”.
O tema é
controverso por inexistir proibição textual expressa. Todavia, entendemos que,
por inferência da legislação, essa postura não parece adequada com a dignidade
dos serviços públicos quando se tratar de serventias sujeitas a regime de
concorrência, pois pode gerar desigualdades. Não enxergamos, porém, problema
nessa prática em serventias não submetidas a regime concorrencial, como os
Registros de Imóveis, pois a captação de clientes por meio de comissões não
está a prejudicar terceiros e, ainda por cima, está a estimular os indivíduos à
formalidade.
No
Distrito Federal, a Corregedoria proibiu expressamente o pagamento de qualquer
“comissão, corretagem, taxa de intermediação ou afim a qualquer agente que não
integre o corpo de empregados do cartório”[7].
E fê-lo mediante provocação da Anoreg/DF. Não houve a distinção entre
serventias, como defendemos acima. A vedação é para todos os serviços
extrajudiciais.
Desse
modo, é indevido que, por exemplo, o oficial dê um “trocado” para o corretor de
imóveis que induzem os seus clientes a lavrarem a escritura de venda de imóveis
na serventia. Seria também indevido que o oficial, ao menos, ressarça as
despesas de locomoção do corretor (gasolina etc.) até a serventia.
8)
QUESTÕES
RELACIONADAS ÀS DESPESAS DA SERVENTIA E AOS TRIBUTOS
Outro
aspecto a ser analisado é se, no exercício do poder de fiscalização, o Poder
Judiciário pode controlar e fiscalizar as despesas operacionais da serventia, a
regularidade do recolhimento dos tributos etc.
Tem-se
notícia de casos em que a equipe de correição já chegou a, no relatório
correcional, indigitar, como irregular, a inclusão de despesas havidas com a
aquisição de lâmpadas entre as despesas dedutíveis da base de cálculo do
Imposto de Renda do oficial, sob o argumento de que lâmpadas não eram
essenciais para a atividade e, portanto, deveriam incorporar a base de cálculo
do Imposto de Renda. Nesse caso, a serventia impugnou o relatório, alegando que
faltaria competência à equipe correcional para esse tipo de juízo e que
lâmpadas eram sim essenciais para a serventia. A Corregedoria local
reconsiderou a posição da equipe correcional.
Trata-se
aqui de outro caso para o qual não há lei textualmente impondo restrições aos
atos-meio do oficial extrajudicial, de modo que a discussão gira em torno da
possibilidade de inferir que a legislação implicitamente impõe restrições ao
oficial na sua gestão administrativa.
A
interpretação que vem prevalecendo no âmbito das Corregedorias é a de que a
saúde financeira das serventias deve ser fiscalizada pelo Poder Judiciário,
pois irregularidades financeiras podem comprometer a qualidade do serviço
prestado ao cidadão. Sob o comando da Corregedoria Nacional de Justiça (um
órgão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ), foi realizado o I Encontro de
Corregedores do Serviço do Extrajudicial ocorrido em 7 de dezembro de 2017 em
Brasília e, entre as metas que foram fixadas para ser cumpridas até junho de
2018, está a seguinte: “realizar fiscalização contábil, financeira, trabalhista
e tributária nos serviços extrajudiciais”[8].
Entendemos,
porém, que isso não autoriza que o Poder Judiciário intervenha na
discricionariedade que tem o oficial de escolher com que gastar ou quando
gastar, salvo quando for constatada falta de condições adequadas na estrutura
da serventia, ou seja, quando se constatar situação tendente à insolvência.
Corregedoria não é consultoria financeira. Todavia, no caso de potencial
insolvência do oficial por conta de desastrada gestão financeira da serventia,
a Corregedoria pode intervir. Afinal de contas, o Estado pode ser
responsabilizado por danos causados a terceiros pelo oficial na hipótese de
insolvência deste (responsabilidade subsidiária).
Entendemos,
também, que não compete ao Poder Judiciário realizar discussões detalhadas
acerca do modo de recolhimento de tributos pessoais do oficial – como o Imposto
de Renda –, pois isso decorre de relação pessoal entre o oficial e o Fisco.
Todavia, o Poder Judiciário pode, ao menos, fiscalizar se o oficial está a
recolher tributos oriundos da sua serventia sem vínculo estritamente pessoal, a
exemplo das contribuições sociais dos empregados, especialmente porque há o
risco de o Estado ser subsidiariamente responsabilizado por essas dívidas.
9)
CASO DA
ARBITRAGEM NOS CARTÓRIOS DE NOTAS
Consideramos
injustificável que a legislação, até o presente momento, não tenha permitido
que os cartórios de notas exerçam função de arbitragem. Embora entendamos que
nem mesmo haveria necessidade de lei específica para que os cartórios de notas
exercessem a função de árbitro, pois eles já devem orientar juridicamente as
partes e lavrar escrituras públicas diante do consenso dos interessados (e a arbitragem
pressupõe escolha consensual do árbitro), convém a edição de uma lei
específica. E há inúmeros motivos para isso.
Em
primeiro lugar, a arbitragem é fruto da escolha dos litigantes, que podem
escolher qualquer pessoa para ser árbitro.
Em segundo
lugar, o tabelião é um profissional do Direito, conforme a Lei nº 8.935/1994,
aprovado em concurso público de elevado nível, e é um agente público
fiscalizado continuamente pelo Poder Judiciário, de maneira que a sua
imparcialidade o tornaria uma formidável opção de árbitro para os indivíduos.
Em
terceiro lugar, é urgente a necessidade de estimular a desjudicialização diante
do afogamento do Poder Judiciário. É fato notório que, em 1988, cerca de 350
mil ações judiciais havia sido protocoladas e, nessa época, o Brasil tinha
cerca de 5 mil juízes. Todavia, em 2009, cerca de 25 milhões de ações foram
protocoladas, enquanto a quantidade de juízes subiu timidamente para apenas 20
mil juízes. Não há juízes suficientes para resolver as demandas em tempo útil.
Em quarto
lugar, ninguém pode negar: a resolução dos processos judiciais demoram anos e
anos na realidade brasileira.
Em quinto
lugar, os meios extrajudiciais devem ser estimulados, como a conciliação, a
mediação e também a arbitragem. Isso é lição que já constava nas antigas
Ordenações Filipinas, de 1603, que, no seu Livro III, Título XX, par 1,
dispunha o seguinte:
"E no começo da
demanda dirá o juiz a ambas as partes, que antes que façam despesas, e se sigam
entre elas ódio e dissensões, se devem concordar, e não gastar suas fazendas
por seguirem suas vontades, porque o vencimento da causa sempre é duvidoso [é
imprevisível o que o juiz decidirá]".
Em sexto
lugar, é consabido que o nível técnico-intelectual dos titulares dos serviços
notariais e de registro atualmente é elevadíssimo, formando uma constelação de
jurista com formação acadêmica invejável e com histórico profissional de
destaque. Entre os titulares, há inúmeros professores universitários,
doutrinadores, ex-ocupantes de cargos públicos relevantíssimos (até mesmo dos
cargos jurídicos mais tradicionais e prestigiados, como os da magistratura e do
Ministério Público). Não há motivo para haver sequer uma centelha de suspeita acerca
da aptidão intelectual dos titulares para assumir funções jurídicas relevantes para
a sociedade, como é a de ser uma alternativa de arbitragem para a população.
Em sétimo
lugar, um passeio de Direito Comparado deixa-nos desconcertados. Os notários
costumam ser admitidos como árbitros em outros países, como em Portugal.
É
injustificável que os cartórios de notas brasileiros, até o presente momento,
não estejam a oferecer serviços de arbitragem para a população.
10)
CONSIDERAÇÕES
FINAIS E A QUESTÃO DA DÚVIDA JURÍDICA RAZOÁVEL COMO EQUILÍBRIO PARA SITUAÇÕES
CINZENTAS
Os
oficiais extrajudiciais estão sujeitos a um regime jurídico híbrido envolvendo
Direito Administrativo e Direito Privado. Embora, em regra, os atos-fim sejam
sujeitos ao Direito Administrativo e os atos-meio, ao Direito Privado, há
exceções a essa regra, de maneira que, com suporte legal expresso ou implícito,
os atos-meio sofrem limitações e podem ser fiscalizados pelo Poder Judiciário.
O
empreendorismo do oficial em inovar, “quebrando paradigmas”, tem de conciliar a
sua audácia com a prudência em não desbordar dos limites legais, sob pena de
expor-se a inconveniências e a constrangimentos disciplinares.
Como a
linha demarcatória do campo de manobra dos oficiais é trôpega e cinzenta, entendemos
que os oficiais, ao se depararem com soluções de duvidosa juridicidade, devem
dar preferência a adotar posturas que contem com o consenso razoável da classe,
o que pode ser obtido em deliberações ocorridas no âmbito das associações de
classe. Isso, porque a interpretação coletiva ganha mais força hermenêutica.
Não se trata, porém, de uma regra, mas de uma mera recomendação.
Em
inúmeros casos, a proposta de inovação de um oficial não convém ser chancelada
pelo seu órgão de classe por se tratar de questão extremamente peculiar da
serventia ou pelo fato de a associação não poder transformar-se em censor dos
seus associados. Nesses casos, entendemos que o oficial deva sim adotar postura
ousada e adotar a interpretação que reputar mais conveniente.
Se, posteriormente,
a sua interpretação vier a ser atacada pelo Poder Judiciário, consideramos que
será indevido punir disciplinarmente o oficial inovador, especialmente se a sua
interpretação era razoável. Conforme já tivemos a oportunidade de defender em
outra ocasião[9], a
dúvida jurídica razoável deve excluir a ilicitude do ato e recomendar a
modulação dos efeitos da decisão posterior para casos futuros (efeitos ex nunc). Isso é reforçado pela Lei nº
13.655/2018, que, modificando a LINDB, ratificou isso e chegou a determinar a
modulação dos efeitos da interpretação no art. 24 da LINDB.
[1]
Este texto resume os
principais temas abordados pelo palestrante na palestra. Todavia, como a palestra
não foi fruto de leitura, o discurso proferido verbalmente assumiu vida
própria, embora tenha encerrado, de um modo geral, as ideias deste texto.
[2] Doutorando, mestre e bacharel em
Direito na Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduado em Direito Notarial e
de Registro. Pós-graduado em Direito Público. Consultor Legislativo do Senado
Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. Advogado. Ex-membro
da Advocacia-Geral da União. Ex-assessor de ministro do STJ.
[4]
Ressalva-se que, para os
interinos, o Conselho Nacional de Justiça entendeu ser necessário aplicar o
teto do funcionalismo publico para o rendimento deles, o que é um despropósito.
O interino, apesar de exercer a delegação em regime privado, assumindo
obrigações em seu próprio nome e estando exposto a indenizações elevadas por
eventuais prejuízos causados a terceiros, recebe a remuneração maxima de que um
servidor publico aufere.
[5] A propósito, o STF chancel essa
amplitude das correições feitas sobre as serventias extrajudiciais (RE
255124, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 08/11/2002).
[6] PA nº 0020374/2017 (Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e Territórios).
[7] PA nº 0020374/2017 (Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e Territórios).