JULGADO IMPORTANTÍSSIMO: discussão de propriedade em ação possessória
Em recente
julgado de março de 2018, o STJ passa a aceitar alegação de propriedade em ação
possessória com o objetivo de provar o direito de possuir (ius possidendi). O
proprietário, porém, não necessariamente vencerá, pois a outra parte pode ter
legítima posse do bem (como um inquilino).
Trata-se de
julgado da Corte Especial do STJ, ou seja, do órgão máximo do STJ.
Embora o
caso concreto envolvesse bem público, os argumentos desenvolvidos pela Corte
Especial no referido julgado se estende para demandas envolvendo bens privado,
pois se cuida de um argumento dito de passagem ("obiter dictum") que
se amolda a qualquer espécie de pendenga judicial possessória.
Desse modo,
o art. 557 do CPC, que veda discussão de "litispendência" entre ação
possessória e ação petitória, deve ser interpretado no sentido de se admitir
que qualquer das partes prove o seu direito de possuir a coisa apenas com base
na alegação de propriedade.
Segue a ementa do
julgado:
"PROCESSUAL CIVIL.
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL.
DEMANDA POSSESSÓRIA
ENTRE PARTICULARES. POSSIBILIDADE DE DEFESA DA POSSE DE BEM PÚBLICO POR MEIO DE
OPOSIÇÃO. 1. Hipótese em que, pendente demanda possessória em que particulares
disputam a posse de imóvel, a União apresenta oposição pleiteando a posse do
bem em seu favor, aos fundamentos de que a área pertence à União e de que a
ocupação de terras públicas não constitui posse.
2. Quadro fático similar
àqueles apreciados pelos paradigmas, em que a Terracap postulava em sede de
oposição a posse de bens disputados em demanda possessória pendente entre
particulares, alegando incidentalmente o domínio como meio de demonstração da
posse.
3. Os elementos
fático-jurídico nos casos cotejados são similares porque tanto no caso
examinado pelo paradigma quanto naquele examinado pelo acórdão embargado de
divergência o ente público manifesta oposição em demanda possessória pendente
entre particulares, sustentando ter ele (o ente público) direito à posse e
alegando domínio apenas incidentalmente, como forma de demonstração da posse.
4. Divergência
configurada, uma vez que no acórdão embargado a oposição não foi admitida, ao
passo que nos paradigmas se admitiu tal forma de intervenção de terceiro.
Embargos de divergência admitidos.
5. O art. 923 do CPC/73
(atual art. 557 do CPC/2015), ao proibir, na pendência de demanda possessória,
a propositura de ação de reconhecimento do domínio, apenas pode ser
compreendido como uma forma de se manter restrito o objeto da demanda
possessória ao exame da posse, não permitindo que se amplie o objeto da
possessória para o fim de se obter sentença declaratória a respeito de quem
seja o titular do domínio.
6. A vedação constante
do art. 923 do CPC/73 (atual art. 557 do CPC/2015), contudo, não alcança a
hipótese em que o proprietário alega a titularidade do domínio apenas como
fundamento para pleitear a tutela possessória. Conclusão em sentido contrário
importaria chancelar eventual fraude processual e negar tutela jurisdicional a
direito fundamental.
7. Titularizar o
domínio, de qualquer sorte, não induz necessariamente êxito na demanda
possessória. Art. 1.210, parágrafo 2º, do CC/2002. A tutela possessória deverá
ser deferida a quem ostente melhor posse, que poderá ser não o proprietário,
mas o cessionário, arrendatário, locatário, depositário, etc.
8. A alegação de
domínio, embora não garanta por si só a obtenção de tutela possessória, pode
ser formulada incidentalmente com o fim de se obter tutela possessória.
9. Embargos de
divergência providos, para o fim de admitir a oposição apresentada pela União e
determinar o retorno dos autos ao Tribunal de origem, a fim de que aprecie o
mérito da oposição."
(STJ, EREsp 1134446/MT,
Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 21/03/2018, DJe
04/04/2018)
A favor
desse entendimento, o STJ invocou estas lições de José Miguel Garcia Medina e
Fábio Caldas de Araújo ao art. 1.210 do CC/2002 (Código Civil Comentado. São
Paulo: RT, 2014):
"A proibição de
alegação do domínio em demandas possessórias precisa de uma releitura no
sistema jurídico atual. O art. 923, CPC impede que, no juízo possessório, sejam
suscitadas questões atinentes ao domínio. Essa proibição advém do direito
romano. A impossibilidade de discussão do domínio em ações possessórias tem
como ponto nodal a maior dificuldade de comprovação da titularidade dominial.
Isto acontecia pela inexistência do regime tabular que foi inaugurado pelo
direito alemão. A comprovação do domínio nos países que não adotaram o regime
de transmissão da propriedade pelo registro ainda vive este problema, como a
Itália, a França e Portugal. Nestes sistemas, a transmissão da propriedade e
sua comprovação estão sujeitas a provatio diabolica . Em nosso sistema, atualmente,
a situação é inversa. A propriedade se adquire pelo registro (art. 1.245, CC).
A sua comprovação é muito mais simples e célere que a da posse. A posse exige a
demonstração de uma situação fática. O domínio de uma situação jurídica .
Impedir o proprietário e sujeitar-se a uma invasão que não está respaldada por
qualquer relação jurídica prévia é impedir o exercício de um direito
fundamental, assegurado pelo art. 5º, caput, CF. Neste caso o juiz
pode (rectius: deve) reconhecer a eficácia imediata (vertical) dos
direitos fundamentais para afastar a vetusta regra do art. 923, CPC. Pensar de
outra forma seria submeter o proprietário a uma duplicação estéril de
procedimentos. Isto violaria outro princípio constitucional, o da duração
razoável do processo. A duração razoável de um processo não pode ser
visualizada apenas no aspecto temporal de uma demanda, mas no tempo de efetiva
pacificação do conflito social. É evidente que esta situação não se aplica para
os casos em que ocorre o desmembramento legítimo da propriedade e da posse. Em
situações como aquelas exemplificadas pelo art. 1.197, CC, de nada adiantará a
alegação de domínio. É o caso do desmembramento da posse (em direta e
indireta), quando esteja suportada por relação jurídica prévia. A comprovação e
alegação do domínio em nada beneficiarão o possuidor indireto, caso este seja
alvo de um interdito proibitório. O importante é realizar a leitura do
dispositivo dentro de uma nova concepção, pois a sua interpretação ainda está
atrelada aos princípios que orientaram o seu surgimento há mais de dois mil
anos."
Com esse entendimento novo do STJ, fica superada a corrente
que veda a alegação de propriedade, ainda que como matéria de defesa (exceptio proprietatis), em sede de ação
possessória, pois a titularidade do direito real assegura um direito de possuir
a coisa se não houver outro obstáculo a tanto (como um contrato de comodato, de
locação etc.). Dessa sorte, ficam vencidos os enunciados nºs 78 (“tendo
em vista a não-recepção pelo novo Código Civil da exceptio
proprietatis (art. 1.210, § 2º) em caso de ausência de prova suficiente
para embasar decisão liminar ou sentença final ancorada exclusivamente
no ius possessionis deverá o pedido ser indeferido e julgado
improcedente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito
real sobre o bem litigioso”) e 79 (“A exceptio proprietatis, como defesa
oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002,
que estabeleceu a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório”)
da Jornada de Direito Civil.
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