Olá, caríssimos amigos!
Foi publicado o seguinte texto meu:
Pensão alimentícia e
colação: uma conciliação entre irrepetibilidade dos alimentos, a solidariedade
familiar e o Direito Sucessório (adendos de comparação com Direito Civil
português e francês)
Como esse texto está em uma revista fechada, transcrevo-o
abaixo. A versão publicada pode ser encontrada neste link:
Esse artigo é
um complemento de um outro que eu havia publicado neste site: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/510568/TD177.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
Segue o texto.
Abraços
Carlos E Elias
Pensão Alimentícia e Colação: uma conciliação entre
irrepetibilidade dos alimentos, a Solidariedade Familiar e o Direito Sucessório
(adendos de comparação com Direito Civil Português e francês[1])
Carlos
Eduardo Elias de Oliveira
(Doutorando,
mestre e bacharel em Direito na Universidade de Brasília. Consultor Legislativo
do Senado Federal em Direito Civil. Ex-Advogado da União. Ex-Assessor de
Ministro do STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e de Registro
Público. E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br. Instagram:
@profcarloselias)
Resumo
O autor
defende a necessidade de serem colacionados os alimentos prestados: (1) a filho maior, capaz e sem
restrições de saúde significativas ao seu potencial laboral e (2) aos descendentes de qualquer grau
desse filho. Nesses casos, em nome da irrepetibilidade dos alimentos e de
outros princípios e valores do Direito Civil, a colação servirá apenas para
igualar a legítima, com a ressalva de que, quando os bens do acervo forem
insuficientes, o alimentando não se sujeitará ao dever de reposição pecuniária
de que cuida o parágrafo único do art. 2.003 do Código Civil. O autor compara
com o sistema brasileiro com o de Portugal.
Palavras-chave: alimentos,
pensão alimentícia, Direito de Família, Direito das Sucessões,
Constitucionalização do Direito Civil.
1
Introdução
O presente texto dedica-se
a, com a maior concisão possível, discutir se os alimentos pagos por ascendente
a descendentes podem ou não ser tidos como antecipação de legítima (art. 544 do
Código Civil – CC[2]) para o fim de ser, quando
da abertura da sucessão, objeto de colação pelo descendente beneficiário (arts.
2.002 e seguintes do CC).
Citamos um exemplo para
ilustrar. João tem dois filhos, Arthur e Manoel. Um deles – o Arthur –
esforçou-se exitosamente na vida para obter uma condição profissional suficiente
a garantir o necessário para sobreviver. Manoel, porém, preferiu o caminho dos
deleites e ignorou qualquer compromisso com estudos e profissão. Suponha que
Manoel deu um neto ao João, aqui batizado de Manoelzinho. Nesse caso, como
Manoel não possui condições financeiras para garantir a própria sobrevivência
nem para custear o necessário para uma vida digna do Manoelzinho, é possível
que João seja condenado, com base nas regras de Direito de Família, a:
a)
a pagar pensão alimentícia tanto ao seu filho leviano
(caso em que o valor da pensão corresponderá ao estritamente necessário para
garantir-lhe a sobrevivência, conforme art. 1.694, § 2º, do CC[3],
que prevê os chamados “alimentos naturais ou necessários”) e
b) a, na condição de
avô, suprir a carência financeira do pai, pagando pensão alimentícia ao neto em
valor suficiente para assegurar-lhe um padrão social similar ao do avô
(hipótese dos “alimentos côngruos ou civis”, sediados no art. 1.694, caput, do CC).
Suponha que João venha a
óbito e tenha deixado um imóvel a ser partilhado. Nesse caso, indaga-se: é
justo que, na partilha hereditária, Manoel, depois de ter, com sua negligência,
consumido grande parte do patrimônio de seu pai com pensões alimentícias para
si e para Manoelzinho, seja aquinhoado com um porção igual à devida ao seu
irmão Arthur?
Essa indagação torna-se mais
complicada com a constatação de que, se João tivesse doado livremente uma
quantia a Manoel (sem a coercitividade de uma pensão alimentícia judicialmente
fixada), esse filho seria obrigado a trazer à colação esse valor para igualar a
herança com seu irmão Arthur.
As respostas a essas
questões são a meta deste texto.
2
Noções teóricas gerais
2.1. Alimentos:
uma liberalidade forçada
A obrigação alimentar dos
avós é subsidiária e complementar, isto é, somente surge quando houver
impossibilidade dos pais (art. 1.698, CC[4]).
É consagrada na doutrina a
irrepetibilidade dos alimentos, de arte que o alimentante não pode reivindicar,
para si, o que pagou a esse título quando verificado posteriormente o caráter
indevido do pagamento.
O instituto dos alimentos
decorre do princípio da solidariedade familiar e impede que viva em penúria
quem possui um parente na linha reta ou, até o segundo grau, na linha colateral
até o segundo grau.
Acontece que, apesar da
irrepetibilidade dos alimentos, o fato é que – entendemos – o pagamento de
alimentos configura, paradoxalmente, uma “liberalidade obrigatória”. É uma
espécie equiparável a uma doação, mas com caráter compulsório: doação, porque
pode ser encaixada como um ato jurídico gratuito, definido como aquele em que a
parte sofre um sacrifício patrimonial sem buscar qualquer proveito patrimonial;
compulsório, porque a lei impõe a prática desse ato, sob pena de sanções).
2.2. Colação
de liberalidades recebidas de ascendente
Em regra, doações (ou
melhor, liberalidades) feitas pelo ascendente ao descendente (ou entre cônjuges
– mas esse não é o foco deste estudo) são reputadas como antecipação de herança
(ou da legítima, com preferem alguns) e,
por isso, em regra, devem ser trazidas à colação pelo herdeiro beneficiário
para fins de isonomia sucessória em relação aos outros descendentes, salvo:
expressa dispensa da colação no título ou presumida dispensa da colação em
razão de o donatário, ao tempo da liberalidade, não ser herdeiro legítimo e de
inexistir disposição expressa impondo a colação. É o que decorre dos arts. 544
e 2.002 e seguintes do CC.
A colação dessas
liberalidades será dispensada em duas situações:
a)
quando o ascendente houver expressamente afastado a
colação da liberalidade e esta corresponda, no máximo, à metade do patrimônio
líquido do ascendente no momento da liberalidade (art. 2.005 do CC[5]);
ou
b) quando a
liberalidade consistir em despesas ordinárias do ascendente com o descendente
menor (art. 2.010 do CC[6]).
A propósito desta
última hipótese, os filhos recém-egressos da menoridade não devem trazer à
colação gastos ordinários com sua alimentação, estudos, transportes etc. Por
menoridade, para efeito dessa regra, deve-se adotar a idade de 24 anos, desde
que, até então, o descendente esteja concluindo os estudos e vivendo às
expensas do ascendente, em respeito ao atual arranjo familiar e social, que
dificulta acesso profissional dos indivíduos antes dessa idade. Nesse sentido, esta
lição doutrinária acerca do art. 2.010 do CC:
Embora o artigo faça referência
somente ao descendente menor, a doutrina sustenta que, para assegurar ao filho
o término dos estudos, especialmente universitários, a obrigação alimentar pode
se prorrogar até os 24 anos. (PELUSO, Cezar (org.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Barueri/SP:
Editora Manole, 2012, p. 2346)
A colação é instituto
indispensável a garantir a isonomia sucessória entre os herdeiros descendentes.
Se, por exemplo, um filho recebeu um apartamento como doação de seu pai e este
vem a falecer sem deixar qualquer outro bem, os outros filhos, enquanto
herdeiros, terão direito a reivindicar uma porção desse apartamento doado de
modo a garantir uma igualdade hereditária. Recorda-se que, se o apartamento não
pertencer mais ao filho donatário, este terá de repor, em pecúnia, a porção
devida aos seus irmãos quando da abertura da sucessão, conforme previsto no art.
2.003 do CC.
Deixar-se-á de lado, no
presente estudo, as controvérsias existentes sobre o valor devido a ser
colacionado diante da aparente antinomia existente entre o art. 2.005 do CC
(que se refere ao valor da liberalidade ao tempo da doação) e o art. 639,
parágrafo único, do Código de Processo Civil de 2015 – CPC/2015 (que,
reiterando o art. 1.014 do anterior CPC/1973, se reporta ao valor do bem ao
tempo da abertura da sucessão).
3
Da colação de pensões alimentícias
3.1. Diretrizes
teóricas
De posse dos conceitos
acima, terreno fértil se tem para refletir sobre a viabilidade de exigir
colação de pensões alimentícias pagas a descendentes, em uma interpretação que
amalgama os arts. 544, 1.694 e 2.002 e seguintes do CC com os princípios da
vedação do abuso de direito, da boa-fé objetiva, da função social, da vedação
do enriquecimento sem causa e da solidariedade familiar.
As reflexões buscarão
cavalgar nas asas dos ventos do movimento de Constitucionalização do Direito
Civil – de que decorre a percepção de que o foco do Direito Civil não está no
patrimônio (“Despatrimonialização do Direito Civil”), e sim na garantia da
dignidade da pessoa humana e na ideia de que o ser humano, mais do que um
agente econômico, é um indivíduo com valores, afetos e existência que se deve
proteger (“Repersonalização do Direito Civil”). Como se infere de lição do
eminente Catedrático Frederico Henrique Viegas de Lima, as novas bases teóricas
do Direito Civil constitucionalizado dá ensanchas à modelação de novas
formulações jurídicas de institutos de direito privado. É do eminente civilista
este escólio, in verbis:
O texto constitucional, ao colocar
determinadas matérias até então eminentemente civilistas em seu articulado,
realmente inovou. E, por tal inovação, as atenções da Academia sempre se
voltaram para as definições e conformações dos direitos novos. De outra parte,
não podemos nos esquecer que o Código Civil em vigor, também trouxe inovações
que inquietaram e inquietam a Academia. Tomemos como exemplo a sistematização
do direito civil mediante princípios e
cláusulas gerais. Dois importantes
avanços que não duvidamos em denominá-los singelamente de Virada de Copérnico, pedindo a devida autorização ao Professor LUIZ
EDSON FACHIN, que, com costumeira sabedoria, a cunhou.[7]
Diante disso, é
necessário alcançar uma conciliação entre todos esses valores nessa ambiência
constitucionalizada, para definir os casos em que a pensão alimentícia deve ser
considerada como liberalidade a ser colacionada.
3.2. Pensão
alimentícia paga ao filho
A primeira hipótese diz
respeito aos alimentos pagos ao filho (e aqui se abrange apenas os filhos que
estão em situação de carência financeira).
Se o filho é “menor”, os
alimentos prestados – por serem considerados “gastos ordinários” – não podem
ser considerados como liberalidades colacionáveis, por força do art. 2.010 do
CC. Conforme já realçado, “menor” abrange o filho até o término dos estudos,
com limite à idade de 24 anos.
Se, porém, o filho for
“maior”, há duas situações.
A primeira é a de filho
“maior” incapaz ou portador de limitação física que dificulte a sua autonomia
financeira. Nesse caso, ele precisará de alimentos por um motivo que não
decorre de culpa sua. Entendemos que, para essa hipótese, deve-se aplicar
extensivamente o art. 2.010 do CC, que, apesar de tratar apenas de “menor” no
seu texto, objetivava abranger também os casos de descendentes carentes
materialmente e com limitações físicas ou mentais impeditivas de sua
independência financeira. Portanto, os alimentos nessa hipótese não são
liberalidades colacionáveis, por interpretação extensiva do art. 2.010 do CC.
Aliás, é nesse sentido que se deve levar em conta as palavras do genial Clovis
Bevilaqua[8],
que ensinava, in verbis:
Quando os alimentos ao descendente maior forem prestados como
obrigação, porque a pessoa, a quem se prestam, não tem haveres, nem pode
prover, por seu trabalho, a própria mantença (artigos 396 e seguintes), não há
liberalidade, nem, por conseguinte, colação.
A segunda é a do filho
“maior” capaz e sem limitações físicas dificultadoras da emancipação
financeira. Se ele se encontrar em situação de penúria, essa decorre de culpa
sua, seja porque não adotou, no curso da vida, as providências de cautela nos
estudos, nos investimentos ou na contenção de gastos, seja em razão de
infortúnios não agressivos à saúde física ou mental e inerentes ao caminho
escolhido pelo filho (a exemplo de uma crise financeira que atinge o seu
ramo profissional). Nesse caso, por haver culpa do alimentado – conceito que
tomamos no sentido amplo retrocitado –, este terá direito a exigir dos
ascendentes os alimentos necessários ou naturais.
Para essa última hipótese
(filho “maior” capaz sem limitações físicas ou psíquicas significativas),
indaga-se: as pensões alimentícias percebidas devem ser tidas por liberalidades
colacionáveis?
A resposta é positiva. Não
se aplica, nem extensivamente, o art. 2.010 do CC, sob pena de prestigiar
condutas descompassadas com os valores da função social, do trabalho e da
boa-fé ou de transferir riscos inerentes aos caminhos escolhidos por um
indivíduo aos demais.
Dessa forma, o filho “maior”
capaz sem restrições físicas ou psíquicas expressivas deve trazer à colação
todos os valores recebidos a título de alimentos, com a devida correção
monetária. Não importa se foram fixados alimentos necessários ou côngruos nesse
caso, pois o próprio pai, por complacência ou por outros fatores, pode ter
consentido com a prestação de alimentos mais generosos. A colação dos alimentos
é forçosa, portanto.
Acontece que a natureza
irrepetível dos alimentos – natureza essa fundada em entendimento doutrinário,
e não em texto legal expresso – desaconselha que o alimentado fique mais pobre
por ter sido beneficiário de alimentos. A irrepetibilidade dos alimentos não
poderia agravar a situação de penúria do alimentado. Assim, no caso de colação
de alimentos percebidos pelo filho “maior” capaz e são, entendemos que a
natureza irrepetível dos alimentos recomenda flexibilizar o parágrafo único do
art. 2.003 do CC[9],
que obriga o herdeiro beneficiário das liberalidades a repor, em dinheiro, os
valores necessários à igualação das legítimas. Não se coaduna com a
irrepetibilidade dos alimentos e com o princípio da solidariedade familiar e da
dignidade da pessoa humana agravar a penúria de quem recebeu alimentos, ainda
que por situação de necessidade provocada por culpa sua. Não se pode exigir a
reposição, em pecúnia, dos alimentos percebidos no caso de os bens deixados
pelo de cujus não serem suficientes
para a igualação das legítimas dos herdeiros. Em suma, se o de cujus deixou bens consideráveis,
poder-se-á deduzir os valores pagos a título de pensão alimentícia do quinhão
hereditário a ser entregue ao descendente que percebeu alimentos. Se, porém, o de cujus não deixou bens expressivos, o
descendente pensionista não terá de repor, em dinheiro, os alimentos percebidos
para igualação de legítima, pois a natureza irrepetível dos alimentos afastaria
a exigência de reposição pecuniária prevista no parágrafo único do art. 2.003
do CC.
Mais um argumento reforça a
conclusão acima. Se, por exemplo, um pai, condoendo-se por ver seu filho capaz
em situação de penúria, decide doar-lhe R$ 200.000,00, valor com o qual o
filho capaz poderia garantir uma renda de R$ 2.000,00 por mês a fim de
garantir a sua sobrevivência por cerca de 100 meses (desprezando os rendimentos
de aplicações financeiras), não há dúvidas de que essa liberalidade é uma
doação e, como tal, deve ser colacionada ao tempo da abertura da sucessão do
pai, salvo dispensa de colação pactuada (arts. 544, 2.002 e 2.005 do CC). Se,
por exemplo, o pai falecer deixando um apartamento, o irmão poderá, como
herdeiro, reivindicar, além da metade do apartamento, cerca de R$ 100.000,00
(desprezando as atualizações monetárias) do filho que usufruiu da sua herança
antecipada a título de colação.
Situação similar não pode
acolher solução diversa, pois ubi eadem
ratio ibi eadem ius (onde houver o mesmo fundamento, haverá o mesmo
direito). Com efeito, se, na hipótese acima, o pai “fecha os olhos” para a
necessidade do filho capaz, este poderá, com o auxílio do Poder Judiciário,
obter uma pensão alimentícia a contragosto do pai. Suponha que a pensão seja
mensal e no valor de R$ 2.000,00 e que ela seja paga ao longo de 100 meses –
quando o pai falece deixando um apartamento. Nesse caso, agrediria o
bom-senso e as noções basilares de Justiça demitir esse filho capaz de
colacionar os valores pagos a título de pensão alimentícia, especialmente em um
contexto em que os alimentos decorreram de culpa dele. Em outras palavras, o
irmão, além da metade do apartamento, deverá ter o direito de reivindicar R$ 100.000,00
como fruto da colação a que se deve obrigar o filho capaz. Esses R$ 100.000,00
deverão ser pagos mediante dedução do quinhão que seria devido ao filho capaz
que recebeu alimentos. Em suma, a partilha ocorrerá dessa forma: (a) o filho capaz que recebera pensão
terá direito a um quinhão correspondente à metade do apartamento, deduzido
deste o valor de R$ 100.000,00; (b) o
irmão terá direito à metade do apartamento, acrescido de uma fração ideal desse
imóvel equivalente a R$ 100.000,00.
Essa solução jurídica em
pauta não conduzirá o filho pensionista à insolvência por vários motivos, dos
quais destacamos este: o filho pensionista poderá reivindicar alimentos de
outro parente, como o próprio irmão, nos termos do art. 1.694 do CC, observado
o binômio necessidade-possibilidade. Outro motivo é que o filho pensionista não
ficará endividado, pois a restituição que ele deve fazer a título de colação
não sairá “do seu bolso” nem se tornará uma dívida sua, pois será deduzida do
quinhão hereditário a que teria direito sobre os bens deixados pelo de cujus. Em outras palavras, o filho
pensionista não receberá herança igual ao de seu irmão, por conta da dedução
feita das antecipações de legítima. E, caso o de cujus não tenha deixado nenhum bem, o filho pensionista não terá
de repor, em dinheiro, as liberalidades recebidas a título de alimentos, conforme
leitura do parágrafo único do art. 2.003 do CC sob a flexibilização provocada
pela natureza irrepetível dos alimentos.
3.3. Pensão
alimentícia paga ao neto de modo subsidiário
Como se sabe, os avós podem
ser obrigados a pagar alimentos ao neto no caso de ausência ou impossibilidade
dos pais. Trata-se de obrigação de natureza subsidiária ou complementar, pois
só surge no caso de impossibilidade total ou parcial de quem possui a
responsabilidade direta, os pais. Em outras palavras, o avô paga alimentos ao
neto apenas se o pai não tiver condições. É como se o avô pagasse uma dívida de
outrem (ou seja, do pai).
Nesse caso, indaga-se: a
pensão alimentícia paga pelo avô deve ser considerada como liberalidade
concedida em proveito do pai e digna de ser colacionada? Trocando em miúdos,
deve-se ou não, para efeito de igualação da legítima, deduzir do quinhão
hereditário os valores pagos a título de alimentos ao neto?
A solução deve ser similar à
já suscitada neste estudo em relação aos alimentos prestados ao filho.
Em se tratando de alimentos
prestados aos netos, se o pai for “maior” e sem limitação física ou psíquica
relevante, a sua impossibilidade de arcar com os alimentos do filho decorre de
culpa sua, considerada a noção ampliativa do conceito de culpa adotada neste
estudo. Nesse caso, o avô é obrigado a pagar pensão alimentícia ao neto por
culpa do pai, de maneira que os valores desembolsados pelo avô devem ser
equiparados a liberalidades colacionáveis feitas ao pai (afinal de contas, o
avô pagou uma dívida que originalmente pertencia ao pai do alimentado). Enfim, os
valores pagos a título de alimentos ao neto devem ser descontados do quinhão a
que o filho inadimplente teria direito em futura sucessão causa mortis, afastado, porém, o dever de reposição em dinheiro de
que trata o parágrafo único do art. 2.003 do CC.
Nos demais casos (a
impossibilidade dos pais não decorre de culpa deste, na acepção de culpa
costurada neste estudo), os alimentos pagos pelos avôs devem ser abrangidos por
uma interpretação extensiva do art. 2.010 do CC em conjunto com os princípios
da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar, de maneira que não
haverá obrigatoriedade de colação. Nada, pois, se deduzirá do quinhão
hereditário devido ao pai do alimentando.
Por fim, ressalte-se que o
raciocínio acima estende-se aos casos de alimentos prestados a descendentes de
graus mais distantes, como a bisnetos, pelos mesmos motivos.
4
Direito comparado
4.1.
Situação
em portugal
É consabido que o Código
Civil brasileiro é espelhado em vários outros Código Civis do mundo, como o
português. Desse modo, se o legislador brasileiro optou por uma redação que
exclui alguma hipótese prevista nos demais Códigos Civis, a presunção é de que isso
foi intencional. Nesses casos, o intérprete deve ser extremamente cauteloso
para não importar regras do direito estrangeiro que foram rejeitadas pelo
legislador brasileiro.
É o que sucede com a colação
de alimentos. Em Portugal, o seu Código Civil é textual em excluir da colação
os alimentos pagos ao descendente, conforme seu art. 2110º, in litteris:
Artigo 2110º
(Despesas sujeitas e não sujeitas a colação)
1. Está sujeito a colação tudo quanto o falecido tiver despendido
gratuitamente em proveito dos descendentes.
2. Exceptuam‐se as despesas com o casamento, alimentos, estabelecimento
e colocação dos descendentes, na medida em que se harmonizem com os usos e
com a condição social e económica do falecido.
Em sede doutrinária, o advogado
lusitano Abílio Neto, com apoio no civilista português R. Capelo de Sousa,
esclarece que o objetivo aí é excluir da colação despesas que o genitor faria
por qualquer dos filhos por dever jurídico. São dele estas palavras[10]:
1. Estão dispensadas de colação as despesas em que esteja ausente a
ideia de liberalidade por decorrerem do cumprimento dos deveres jurídicos
(suscetíveis ou não de exigência social) e certas despesas gratuitas
resultantes de deveres sociais juridicamente atendíveis, dos pais para com os filhos,
que obrigam os pais em relação a cada um dos filhos e que se presume que a pais
farão sempre que qualquer dos filhos se encontre em idênticas circunstâncias
(R. Capelo de Sousa, Sucessões, 2º -
267, nota 1011).
2. O pagamento dos prémios de seguros pode ser considerado doação
indirecta e o beneficiário do seguro, que concorrer à sucessão, está sujeito à
colação pelo seu valor (Oliveira Ascensão, Sucessões,
1980, 51).
O anterior Código Civil
português, o velho Código Seabra[11],
de 1867, era ainda mais explícito no seu art. 2.105º, que estatuía, in verbis:
Artigo 2105º
As despezas de alimentos, e as doações remuneratórias de serviços, ou
feitas para indemnisar os filhos de quaisquer bens distrahidos pelos pais, não
serão sujeitos à colação.
Como se vê, todos os Códigos
Civis portugueses (o Seabra e o atual), que esteve entre os que inspiraram
tanto o texto do Código Civil brasileiro de 1916 quanto o do Código Civil de
2002 era hialinamente explícito em afastar as despesas de alimentos dos bens
colacionáveis.
E mais: as normas
portuguesas eram indiferentes ao fato de os alimentos terem sido dados a filho
maior ou menor.
O legislador brasileiro,
todavia, não seguiu a mesma linha de raciocínio em excluir os alimentos da
colação em proveito de filhos maiores. E isso deve ser interpretado como
proposital diante da relevância dessa regra. A propósito, o art. 2.010 do atual
Código Civil brasileiro tem a seguinte redação:
Art. 2.010. Não virão à colação os gastos ordinários do ascendente com
o descendente, enquanto menor, na sua educação, estudos, sustento, vestuário,
tratamento nas enfermidades, enxoval, assim como as despesas de casamento, ou
as feitas no interesse de sua defesa em processo-crime.
O atual art. 2.010 do Código
Civil de 2002 reproduziu o art. 1.793 do Código Civil de 1916, cuja transcrição
convém:
Art. 1.793. Não virão também à colação
os gastos ordinários do ascendente com o descendente, enquanto menor, na sua
educação, estudos, sustento, vestuário, tratamento nas enfermidade, enxoval e
despesas de casamento e livramento em processo crime, de que tenha sido
absolvido.
Veja que todos os Códigos
Civis brasileiros, além de não terem previsto os alimentos, ainda fez uma
ressalva: somente despesas ordinárias feitas com filhos menores seriam
excluídas da colação. Se o filho for maior, nenhuma das despesas previstas no
art. 2.010 do CC seria dispensada de colação.
Portanto, uma análise
levando em conta o Código Civil português só reforça o entendimento ora
defendido, firmado no sentido de que os alimentos pagos ao filho maior ou aos
netos gerados por este devem ser colacionados por esse filho menor se este
tiver sido culpado pela situação de necessidade.
4.2.
Situação na
França
O Código Civil francês de
1804 – o famoso Código Civil napoleônico – inegavelmente influenciou todos os
demais Códigos do mundo. Ele foi o primeiro Código Civil do mundo.
E, à semelhança dos Códigos
Civis portugueses (tanto o Seabra quanto o atual), o art. 852 do Código Civil
napoleônico foi textual em dispensar da colação as despesas de alimentos (“frais de nourriture”) feitas com
descendente bem como em ser indiferente à menoridade ou à maioridade do descendente.
Eis o texto do art. 852 do Código Civil napoleônico na sua versão original[12]:
Article 852
Les frais de nourriture, d'entretien, d'éducation, d'apprentissage, les
frais ordinaires d'équipement, ceux de noces et présents d'usage, ne doivent
pas être rapportés[13].
Apesar de, em 2007, esse
dispositivo ter sido alterado para permitir que, mediante a vontade do autor da
liberalidade, seja determinada a colação, a sua essência não se modificou: as
despesas de alimentos continuam sendo não colacionáveis como regra geral. O
texto atual do art. 852 do Código Civil francês é este:
Article 852
Les frais de nourriture, d'entretien, d'éducation, d'apprentissage, les
frais ordinaires d'équipement, ceux de noces et les présents d'usage ne doivent
pas être rapportés, sauf volonté contraire du disposant.
Le caractère de présent d'usage s'apprécie à la date où il est consenti
et compte tenu de la fortune du disposant.[14]
O
legislador brasileiro, seja ao elaborar o Código Bevilacqua, seja ao
confeccionar o Código Reale, tinha plena ciência do texto do Código Civil
francês e, por isso, propositalmente não quis impossibilitar a colação de
alimentos pagos por conta de negligência de filho maior.
Como
se vê, um olhar para além do Atlântico para sondar o direito português e o
francês apenas confirmam a opção brasileira de permitir a colação de alimentos
na hipótese ora defendida neste artigo.
5
Conclusão
Em suma, à luz da
irrepetibilidade dos alimentos, do caráter subsidiário e complementar da
obrigação de alimentos pelos avós (ou por ascendentes de grau mais distante),
da interpretação restritiva do parágrafo único do art. 2.003 do CC, da
inaplicabilidade do art. 2.010 do CC e dos princípios da vedação do abuso de
direito, da boa-fé objetiva, da função social, da vedação do enriquecimento sem
causa, da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar, tudo sob as
cores do movimento de Constitucionalização do Direito Civil (inclusas a
Repersonalização e a Despatrimonialização), desenvolveu-se a seguinte tese. Devem ser colacionados, sem a
obrigatoriedade da reposição pecuniária do parágrafo único do art. 2.003 do CC,
os alimentos prestados: (1) a filho
maior, capaz e sem restrições de saúde significativas ao seu potencial laboral
e (2) aos descendentes de qualquer
grau desse filho saudável.
Por outro lado, com base nos
mesmos fundamentos teóricos acima, acrescidos da interpretação extensiva do
art. 2.010 do CC, não devem ser
colacionados os alimentos prestados a filhos maiores incapazes ou com
restrição de saúde significativas ao seu potencial laboral.
O entendimento acima
encontra suporte na legislação vigente e, portanto, prescinde de alterações
legislativas. Todavia, em nome da clareza normativa e da conveniência de, por
meio da redação legislativa, prevenir divergências hermenêuticas entre os operadores
do Direito, é de bom alvitre que sejam feitos os seguintes ajustes
legislativos:
a)
Incluir, no art. 2.010 do CC: (a.1.) a previsão de que alimentos prestados a filhos maiores
incapazes ou com restrição de saúde significativas ao seu potencial laboral e aos
descendentes deste não são colacionáveis; (a.2.)
a previsão de que os alimentos prestados a filhos maiores capazes e sem as
referidas restrições físicas são colacionáveis; e (a.3.) o disposto no caput estende-se
aos descendentes com idade até 24 anos, se ainda estiverem realizando
capacitação intelectual ou profissional às custas do ascendente.
b) Incluir no art.
2.003 do CC que a reposição pecuniária de que trata o caput do referido dispositivo não se estende ao aos casos de
colação de alimentos prestados a descendentes.
6
Referências bibliográficas
BEVILAQUA, Clovis. Código
Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado por Clovis Bevilaqua. Rio de
Janeiro: Editora Rio, 1979
LIMA, Frederico Henrique Viegas. O Delineamento da Propriedade
imobiliária na Pós-Modernidade. In: LIMA, Frederico Henrique Viegas
(coord.). Direito Civil Contemporâneo.
Brasília/DF: Obcursos Editora, 2009,
NETO, Abílio.
Código Civil Anotado.
Lisboa/Portugal: Ediforum Edições Jurídicas; Coimbra/Portugal: Edições
Almedina; 2018.
PELUSO, Cezar (org.). Código Civil comentado: doutrina e
jurisprudência. Barueri/SP: Editora Manole, 2012.
[1] O
presente artigo é uma versão aprimorada de outro já publicado em 2015 (OLIVEIRA,
Carlos Eduardo Elias de. Pensão
Alimentícia e Colação: uma conciliação entre irrepetibilidade dos alimentos, a
solidariedade familiar e o direito sucessório. Brasília: Núcleo de Estudos
e Pesquisas/CONLEG/ Senado, jun./2015 (Texto para Discussão nº 177). Disponível
em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 24 de junho de 2015. Entre outros
retoques, acrescentamos um capítulo de Direito Comparado, cotejando o direito
brasileiro com o de Portugal e o da França para robustecer o posicionamento ora
esposado.
[2] “Art. 544. A doação
de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento
do que lhes cabe por herança”.
[3] “Art. 1.694. Podem
os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de
que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social,
inclusive para atender às necessidades de sua educação.
(...)
§ 2º Os alimentos serão apenas os
indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de
culpa de quem os pleiteia”.
[4] “Art. 1.698. Se o
parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de
suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato;
sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na
proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão
as demais ser chamadas a integrar a lide”.
[5] “Art. 2.005. São
dispensadas da colação as doações que o doador determinar saiam da parte
disponível, contanto que não a excedam, computado o seu valor ao tempo da
doação”.
[6] “Art. 2.010. Não
virão à colação os gastos ordinários do ascendente com o descendente, enquanto
menor, na sua educação, estudos, sustento, vestuário, tratamento nas
enfermidades, enxoval, assim como as despesas de casamento, ou as feitas no
interesse de sua defesa em processo-crime”.
[7] LIMA, Frederico Henrique Viegas. O
Delineamento da Propriedade imobiliária na Pós-Modernidade. In: LIMA, Frederico Henrique Viegas
(coord.). Direito Civil Contemporâneo.
Brasília/DF: Obcursos Editora, 2009, p. 152.
[8] BEVILAQUA,
Clovis. Código Civil dos Estados Unidos
do Brasil comentado por Clovis Bevilaqua. Rio de Janeiro: Editora Rio,
1979, p. 1.027.
[9] “Art. 2.003. A colação tem por fim igualar, na
proporção estabelecida neste Código, as legítimas dos descendentes e do cônjuge
sobrevivente, obrigando também os donatários que, ao tempo do falecimento do
doador, já não possuírem os bens doados.
Parágrafo único. Se, computados os valores das doações feitas em
adiantamento de legítima, não houver no acervo bens suficientes para igualar as
legítimas dos descendentes e do cônjuge, os bens assim doados serão conferidos
em espécie, ou, quando deles já não disponha o donatário, pelo seu valor ao
tempo da liberalidade.”
[10] NETO,
Abílio. Código Civil Anotado.
Lisboa/Portugal: Ediforum Edições Jurídicas; Coimbra/Portugal: Edições
Almedina; 2018, p. 1.577.
[11] O
epíteto é uma homenagem ao jurista António Luís de Seabra e Sousa, responsável
pela redação do primeiro Código Civil português: o Código de 1867.
[13] Em
tradução livre:
“Artigo 852
O custo de alimentação, de manutenção, de educação,
de aprendizado, os custos de sustento comum, as despesas com casamento e os
presentes usuais não devem ser colacionados”
[14] Em
tradução livre:
“Artigo 852
O custo de alimentação, manutenção, educação,
aprendizado, os custos de sustentos comum, as despesas com casamento e os
presentes usuais não devem ser colacionados, a menos que o autor da
liberalidade deseje.
(...)”
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