Compartilho agora texto meu que trata da dúvida jurídica razoável e da sua influência nos vários ramos do Direito. Para acessá-lo, você tem duas opções: (1) leia o texto ao final deste "post" ou (2) clique no seguinte link, que se remete ao site do grande e civilista Professor Flávio Tartuce: http://www.flaviotartuce.adv.br/assets/uploads/artigosc/be9bc-artigo_celias_respcivil.docx.
Sustento que a dúvida jurídica razoável pode ser utilizada para afastar (ou, pelo menos, atenuar) a responsabilidade civil e para rejeitar outros efeitos drásticos nos demais ramos do Direito.
Trato de questões polêmicas sob essa ótica.
Um exemplo: cabe dano moral contra Shopping que nega a entrada de transexual ao banheiro feminino?
Outro exemplo: no caso do impeachement da Presidente da República em 2016, foi ou não legítima a decisão do Senado Federal no sentido de só aplicar a pena de perda do cargo, sem também cassar os direitos políticos da Presidente?
Mais um exemplo: o TCU pode punir o gestor público que se amparou em dúvida jurídica razoável?
E se o gestor tiver se amparado em parecer jurídico emitido por membro da Advocacia Pública?
O tema é bem palpitante; espero que gostem da leitura!
Transcrevo o texto abaixo para facilitar a leitura.
Abraços!
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A Dúvida
Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos: hipótese de excludente
ou atenuante de responsabilidade civil e de afastamento de efeitos jurídicos
deproporcionais em outros ramos do Direito
O estudo aborda a dúvida jurídica razoável e
desenvolve conceitos ora batizados de “cindibilidade dos efeitos da
ilegalidade” e de “ilegalidades legítima e ilegítima”, com o objetivo de
demonstrar que a adoção de uma interpretação possível da norma não pode ser
reprimida apenas por conta de, posteriormente, o órgão oficialmente competente
ter escolhido outra interpretação. Com base nisso, o estudo demonstra que,
nesse ambiente de dúvida jurídica razoável, deve ser considerada indevida a
produção de efeitos jurídicos desproporcionais, como a condenação ao pagamento
de indenizações por danos (responsabilidade civil), a aplicação de sanções
administrativas a agentes públicos (como as feitas por órgãos de controle em
matéria de licitações e de contratos) etc. O estudo trata de vários casos
concretos, como o relativo ao cabimento ou não da condenação de um shopping a
pagar indenização por dano moral a um transexual que foi impedido de acessar o
banheiro feminino. Esse tema está atualmente pendente de julgamento no STF.
Trata, também, da discussão candente que houve acerca do cabimento ou não da
redução interpretativa feita pelo Senado Federal no sentido de infligir a
sanção de impeachement a um
Presidente da República no ano de 2016, sem impor-lhe concomitantemente a pena
de cassação de direitos políticos por oito anos. O estudo demonstra que a
cindibilidade dos efeitos jurídicos de uma ilegalidade diante de um cenário de
dúvida jurídica razoável deve ser aplicada em todos os ramos do Direito. O
estudo lembra que, no processo civil, ao lado da fungibilidade recursal, há a
modulação dos efeitos da jurisprudência, do que dá exemplo o fato de o STJ ter
admitido como tempestivo recurso interposto com base em interpretação que,
posteriormente à data da interposição, foi superada. O estudo também critica
alguns julgados do STJ que, apoiando-se em princípios, considerou ilícitas
condutas de particulares baseadas na interpretação literal do texto de lei e de
contratos. A crítica não se deveu ao fato de o STJ ter feito interpretações com
base em princípios. Isso é plenamente viável, pois direito é fato, valor e
norma. A crítica decorreu da falta de empatia do STJ em ignorar o cenário de
dúvida jurídica razoável e de, por meio da cindibilidade dos efeitos jurídicos,
afastar sanções desproporcionais, como a indenização por dano moral. Esse foi o
caso de um condômino que se baseou na convenção de condomínio para instalar uma
padaria e o caso da instituição financeira que se valeu da ação de busca e
apreensão diante do inadimplemento de uma prestação de um financiamento feito
para a aquisição de um veículo. O estudo elogia, por outro lado, julgados do
STJ que se valeu da dúvida jurídica razoável para afastar a responsabilidade
civil, a exemplo do caso de negativas de coberturas de tratamento
médico-assistencial feitos por planos de saúde com base em um cenário de dúvida
jurídica razoável. Ao final, o estudo aponta que, embora as conclusões ora
desenvolvidas possuam forte suporte teórico, há espaços a serem aprimorados na
legislação para evitar interpretações diversas entre os operadores do Direito,
de modo que convém a edição de projetos de lei que promovam ajustes no art. 186
do Código Civil e no art. 38 da Lei nº 13.327, de 29 de julho de 2016.
Palavras-chave: dúvida
jurídica razoável, dúvida objetiva, cindibilidade dos efeitos jurídicos, Miguel
Reale, teoria tridimensional do direito, culturalismo jurídico, hermenêutica,
interpretação, boa-fé, segurança jurídica, legalidade, Estado de Direito,
processo administrativo disciplinar, controle externo e interno na
Administração Pública, impeachement,
responsabilidade civil, indenização.
Sumário
1. INTRODUÇÃO....................................................................... 5
2. A DÚVIDA
JURÍDICA RAZOÁVEL NO CENÁRIO INCERTO DA
NATUEZA JURÍDICA 6
2.1. Da natureza incerta do Direito........................................................................... 7
2.2. Da ilegalidade legítima e a ilegalidade ilegítima: o
dilema entre boa-fé e legalidade diante da dúvida jurídica razoável 10
2.3. da cindibilidade dos efeitos da ilegalidade legítima:
o juízo de correlação de proporcionalidade entre o grau de ilegalidade legítima
e a intensidade dos efeitos jurídicos................................................................................................ 12
2.4. Da instância competente para escolher a interpretação
vitoriosa: necessidade de uniformização 14
3. A Dúvida
Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos nos vários Ramos do
Direito. 15
3.1. Direito penal: a configuração do crime e o caso
do impeachement da presidente da
república em 2016 15
3.2. Direito Administrativo: sanções administrativas,
controle externo, caso da advocacia privada por membro da agu, improbidade
administrativa, repetição de indébito de valores pagos e convalidação de
nomeação sem concurso público 16
3.3. Processo Civil: fungibilidade recursal e
modulação dos efeitos de mudança de jurisprudência 20
4. A Dúvida
Jurídica Razoável como Excludente ou Atenuante de Responsabilidade Civil 20
4.1. A violação de direito como requisito para a
responsabilidade civil................... 20
4.2. a dúvida jurídica razoável como excludente total
ou parcial (atenuante) de responsabilidade civil 21
4.3. Casos concretos................................................................................................. 23
4.3.1. Acesso a banheiro feminino por transexual.................................................... 23
4.3.2. Dano moral a condômino perturbado pelo
funcionamento de uma padaria na loja do vizinho com fundamento na supressio (Crítica a julgado do STJ) 25
4.3.3. Dano moral por negativa de cobertura
médico-assistencial por plano de saúde com base em dúvida jurídica razoável
(STJ) 26
4.3.3. Equívoco na condenação de credor fiduciária a
servir-se da ação de busca e apreensão (crítica a julgado do STJ) 27
5. CONCLUSÃO........................................................................ 29
A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade
dos Efeitos Jurídicos: hipótese de excludente ou atenuante de responsabilidade
civil e de afastamento de efeitos jurídicos deproporcionais em outros ramos do
Direito
1.
É justo um Shopping ser condenado a pagar indenização
por dano moral em favor de um pessoa transexual que foi obstruída de ingressar
no banheiro feminino pelo fato de seu gênero registral ser masculino,
considerando que o fato ocorreu em um momento de falta de clareza das normas
acerca das normas de uso de banheiro por transexuais?
2.
É correto que um agente público, sem dolo ou
fraude, ser punido administrativamente por ter praticado um ato administrativo
com base em uma interpretação jurídica razoável da norma que, posteriormente,
veio a ser rejeitada pelo órgão de controle?
3.
Foi juridicamente válida a decisão do Senado
Federal de, em 2016, diante de um crime de responsabilidade, segregar a pena de
impeachement da cassação de direitos
públicos após ter entendido estar configurado um crime de responsabilidade por
parte do Presidente da República?
4.
Há várias outras questões igualmente
controversas que, a nosso sentir, estão carentes de análises jurídicas mais
adequadas. Buscaremos, ainda que seja com uma modesta centelha de ideias,
contribuir para preencher essa lacuna.
5.
Desde a minha graduação, inquieta-me o tema
objeto deste estudo. Inicialmente, eu não conseguia nominar essa preocupação;
ainda estava começando os estudos jurídicos. Cuidava-se de um sentimento de que
havia uma grande injustiça em punir indivíduos que, em meio a um rosário de
sentidos possíveis de uma norma, escolhia uma que veio a ser, no futuro, derrotada
no Poder Judiciário ou em algum órgão administrativo competente.
6.
A certeza jurídica prévia deveria ser uma
meta de todo jurista. É fundamental que as regras do jogo sejam claras de
antemão. Isso é um pressuposto do Estado de Direito. Percebi, porém, que o
Direito, por sua própria natureza incerta, jamais poderá fornecer essa previsibilidade
perfeita. A atividade do intérprete sempre pode surpreender.
7.
Com ciência disso, passei a investigar se o
Direito disporia de alguma ferramenta para, ao menos, atenuar consequências
punitivas desproporcionais ao indivíduo que adotou uma interpretação que foi,
posteriormente, vencida pela instância competente para dar a palavra final. Essa
investigação tem me acompanhado ao longo da minha trajetória profissional e
acadêmica, com experiência nos Três Poderes da República e nas advocacias
pública e privada.
8.
O presente estudo reúne reflexões que foram
resultantes de todo esse percurso. A abordagem, porém, é feita de modo mais
direto e objetivo e, em determinados pontos, com certa superficialidade, porque
a sua complexidade reivindicaria tranquilamente um trabalho de centenas de
páginas.
9.
Em suma, o presente estudo trata da dúvida
jurídica razoável como um elemento que deve ser levado em conta pelo jurista no
momento de julgar a situação daquele indivíduo que, sem ter uma clareza da
norma jurídica diante da existência de múltiplas interpretações possíveis, tem
o dever de arriscar na escolha de uma delas.
10.
O tema é pouco explorado nos estudos
contemporâneos de Direito, mas, neste estudo, busca-se demonstrar a extrema
utilidade e atualidade do tema.
11.
Demonstra-se que a dúvida jurídica razoável
deve ser tida como uma hipótese de exclusão (ou, no mínimo, de atenuação) da
responsabilidade civil e também de afastamento de efeitos jurídicos
desproporcionais em outros ramos do Direito.
12.
Norma é texto e contexto.
13.
Recásens Siches – que apregoava não ser a
lógica do Direito a do racional, e sim a da razoável – fornece notável exemplo
disso ao tratar do caso clássico da norma que proíbe a entrada de animais em um
ambiente. Por esse exemplo, Siches evidencia que mesmo uma norma bem redigida
admite interpretações que vão além da sua letra fria. Para o célebre jurista,
se uma norma textualmente estabelece que “é proibida a entrada de animais”,
haveria diversas possibilidades de interpretação. Caso um jovem quisesse
adentrar o ambiente com o seu cachorro de estimação, a interpretação mais
adequada daquela norma seria no sentido de barrar-lhe o ingresso. Caso, porém,
uma pessoa com deficiência visual pretenda entrar no ambiente com o seu
cão-guia, a mesma norma deveria ser interpretada de modo diverso, para admitir
o ingresso do animal, levando em conta o espírito da norma, que respeita
valores jurídicos relevantes como o do acessibilidade em favor das pessoas com
deficiência. Na lição de Recásens Siches, o Direito é circunstancial, como toda
obra humana[2].
14.
A clareza do comando de uma norma não é
obtida com a mera leitura do seu texto, pois todo texto permite mais de um
sentido possível, conforme lições comezinhas de hermenêutica. Há constantes
disputas entre os hermeneutas para fazer prevalecer a sua interpretação e,
nesses embates, a vitória de um sentido sempre estará vulnerável diante de
alterações na pessoa incumbida de interpretar e nas próprias condições fáticas
que circunda o hermeneuta[3]. Isso justifica o fato de os órgãos
colegiados dos tribunais testemunharem inúmeros julgamentos obtidos sem
unanimidade dos julgadores. Isso também explica as não invulgares mutações
jurisprudenciais nos Tribunais após a alteração da composição do quadro de
julgadores ou após o advento de um novo contexto fático da sociedade. Mudam-se
os julgadores, transformam-se os valores, altera-se o quadro social e, também,
frequentemente, modifica-se a interpretação de uma mesma norma.
15.
A natureza do Direito é incerta. A
previsibilidade cartesiana e inequívoca não lhe é uma fiel irmã. A sua
previsibilidade sempre é enevoada pela instabilidade da condição humana dos
hermeneutas e pela feição amorfa da própria matéria-prima do Direito.
16.
Não há como pretender extrair interpretações
apodíticas e unívocas da matéria-prima do Direito, pois uma interpretação
triunfante em um determinado contexto histórico poderá ser condenada, com
veemência, em uma nova realidade.
17.
A teoria do conhecimento jurídico
(ontognoseologia jurídica) de Miguel Reale sublinha essa natureza. Como
sintetiza o notável civilista Flávio Tartuce[4], a ontognoseologia jurídica do pai do
Código Civil de 2002 enxerga o Direito sob dois aspectos: um objetivo e um
subjetivo.
18.
Sob o aspecto subjetivo (que diz respeito a
quem interpreta a norma), Reale desenvolve o culturalismo jurídico, para afirmar que o operador do Direito, ao
oferecer a sua interpretação da norma, é inevitavelmente influenciado por sua
cultura, história e experiência. Nas palavras de Tartuce, “não restam dúvidas
de que o julgador leva para o caso prático a sua história de vida, a sua
cultura – formadora do seu caráter –, e, principalmente, as suas experiências
pessoais, nas atribuições de magistrado ou fora delas. Os acontecimentos que
repercutiram na sociedade também irão influir nos futuros posicionamentos
jurisprudenciais, havendo nesse ponto uma valoração ideológica”[5].
19.
Sob o aspecto objetivo (que se refere ao
objeto de trabalho do jurista), o saudoso civilista costurou a teoria tridimensional do direito,
segundo a qual a matéria-prima do Direito é fato, valor e norma, e não apenas a
letra fria do texto da norma.
20.
Em outras palavras, o jurista, ao se deparar
com o desafio de aplicar uma norma a um caso concreto, terá de fazer escolhas
entre as múltiplas opções possíveis. A depender do operador do Direito (ou
seja, a depender de sua história, cultura e experiência), ele dará uma
interpretação. E mais. O jurista não se restringirá ao texto da lei na sua
tarefa, mas também haverá de consultar os fatos e os valores vigentes no seu
momento para dar uma solução jurídica.
21.
Essa natureza inexata da ciência jurídica
justifica a inquietante constatação de um mesmo caso concreto ser solucionado
de modo diverso (e até mesmo antagônico) por diferentes julgadores.
22.
Isso também justifica as mudanças de
orientações jurisprudenciais que assustam os juristas: a Corte Maior de um País
pode mudar sua interpretação jurídica em razão da alteração de sua composição
de julgadores (culturalismo jurídico) e do contexto (teoria tridimensional do
Direito).
23.
Já está superado, de há muito, a noção
formalista vigente à época do Código Civil napoleônico, no sentido de que o
juiz (rectius, o jurista) é meramente
a boca da lei. O crime de exegese já não encontra o mínimo conforto no cenário
jurídico atual: não se pode punir o jurista por divergências de interpretações.
24.
Em suma, o Direito não se resume à lei
escrita e, a depender da história, cultura e experiência pessoais do jurista
que o opera, poderá oferecer soluções diversas a um mesmo caso concreto.
25.
É nesse contexto que se compreende a crítica
do jurista Eros Roberto Grau ao reducionismo do Direito à lei. Disso deu
notícia o notável Ministro Gilmar Mendes em sua homenagem a Eros Roberto Grau[6], in verbis:
À força das palavras, Eros Grau somou o poder da luta efetiva com as
armas da lei e do Direito para alcançar a sonhada Justiça – sem dúvida, o
melhor de todos os argumentos. Por quatro décadas fez da Advocacia a
trincheira de onde torpedeou desde a ilegalidade ao normativismo
vazio. Volto a citá-lo, de maneira a melhor fruir da pureza só obtida na
própria fonte:
Que me perdoem os estudiosos que tomam a norma escrita, positiva, como
objeto único de suas indagações. Isso é pouco e demasiado pobre para mim.
Prefiro os desafios mais amplos, ainda que irresolúveis, a ocultar-me na
cidadela do normativismo.
Uma teoria crítica supõe a concepção do direito não apenas como norma,
mas como conjunto de preceitos enraizados nas condições de vida material,
preceitos que as representam de maneira deformada, ideologicamente. Uma teoria
crítica é uma teoria voltada à transformação do mundo. Eis o que me motiva e me
conduziu até aqui. Viemos ao mundo para marcar os nossos próprios pés na areia
inexplorada.
Pensar e refletir criticamente não apenas sobre o direito, mas sobre o
mundo. Mundo em transformação, mundo que necessita, para que se possa
transformar, do dinamismo de um direito também em transformação.
Esse, o direito instrumento de mudança social, o direito que me cumpre
ensinar, porém, mais do que isso, que me proponho estudar. Direito que há de
ser resolvido em suas bases, mediante o profundo questionamento das teorias que
o sustentam. Dele pouco sei. Menos, porém, por certo, do que dele saberei
amanhã. O compromisso, que assumo, de perseverar a pesquisar e a refletir sobre
o direito, assumo-o comigo mesmo.
Uma teoria crítica supõe a concepção do direito não apenas como norma,
mas como conjunto de preceitos enraizados nas condições de vida material,
preceitos que as representam de maneira deformada, ideologicamente. Uma teoria
crítica é uma teoria voltada à transformação do mundo. Eis o que me motiva e me
conduziu até aqui. Viemos ao mundo para marcar os nossos próprios pés na areia
inexplorada.
Pensar e refletir criticamente não apenas sobre o direito, mas sobre o
mundo. Mundo em transformação, mundo que necessita, para que se possa
transformar, do dinamismo de um direito também em transformação.
Esse, o direito
instrumento de mudança social, o direito que me cumpre ensinar, porém, mais do
que isso, que me proponho estudar. Direito que há de ser resolvido em suas
bases, mediante o profundo questionamento das teorias que o sustentam. Dele
pouco sei. Menos, porém, por certo, do que dele saberei amanhã. O compromisso,
que assumo, de perseverar a pesquisar e a refletir sobre o direito, assumo-o
comigo mesmo.”[7]
26.
A perplexidade com essa fluidez da norma
jurídica é tamanha que o juiz federal George Marmelstein Lima ironiza os
julgamentos de vários órgãos superiores, ao identificar que, neles, costuma
vigorar “a teoria da Katchanga, já que ninguém sabe ao certo quais são as
regras do jogo. Quem dá as cartas é quem define quem vai ganhar, sem precisar
explicar os motivos”[8].
27.
Diante da imprecisão própria da ciência
jurídica, cabe ao operador do Direito ter posição cautelosa no julgamento de
condutas, pois eventual violação de uma interpretação jurídica não é sinônima
de má-fé.
28.
Quando o destinatário da norma jurídica opta
por uma interpretação jurídica viável, não se lhe pode impingir a nódoa da
má-fé em razão de, futuramente, a sua alternativa hermenêutica não ter
prevalecido no âmbito de instâncias julgadoras oficiais.
29.
Mera discordância de uma interpretação
jurídica futuramente vitoriosa não é uma sinonímia da má-fé ou do desvio de
caráter.
30.
De fato, a interpretação jurídica que
prevalecer definirá o que é ou não legal. A legalidade é definida pela interpretação
vitoriosa. As interpretações vencidas serão reunidas sob o manto da
ilegalidade. Quem se amparou nessa interpretação vencida será rotulado como
ilegal. E é aí que o jurista precisa ter a sensibilidade de, reconhecendo a
natureza incerta do Direito, admitir que a ilegalidade não necessariamente corresponderá
à má-fé, especialmente quando houver um cenário de dúvida jurídica razoável.
31.
Se a interpretação vencida contava com
razoabilidade à luz da comunidade jurídica, da história do direito e da
tradição da sociedade, ela caracterizará uma situação de dúvida jurídica
razoável (ou de dúvida objetiva), a qual afasta a existência de má-fé. De fato,
a boa-fé objetiva exige o respeito à legítima expectativa dos indivíduos e
condena a traição dessa confiança com surpresas. A dúvida jurídica razoável
cria um cenário de legítima expectativa nos indivíduos, que, confiando na
legitimidade de uma interpretação razoável, não pode ser estigmatizado com a pecha
da má-fé.
32.
O indivíduo não pode ser punido se se
estribou em uma interpretação razoável que veio a ser vencida posteriormente. É
absurdo puni-lo por falta de dons de vidência. Não lhe comete fazer exercício
de futurologia para vaticinar qual será a interpretação que futuramente o órgão
competente irá adotar. O indivíduo que se ampara em uma interpretação razoável
nessa hipótese não incorre em má-fé e, se for possível dizer que ele cometeu
algum erro de interpretação, esse erro, no mínimo, deve ser considerado um erro
plenamente escusável, pois não lhe socorria o dom da vidência para adivinhar
qual interpretação viria a, no futuro, sagrar-se vencedora.
33.
Ao nosso sentir, para efeito de
nomenclatura, designamos de ilegalidade qualquer contrariedade à interpretação
vitoriosa. A ilegalidade, porém, pode ser classificada em legítima e ilegítima.
Será legítima, quando a contrariedade à interpretação vitoriosa estiver amparada
em uma outra intepretação que, apesar de vencida, era razoável (dúvida jurídica
razoável). A ilegalidade será ilegítima, porém, se inexistir dúvida jurídica
razoável a favor.
34.
A ilegalidade legítima, porque está ancorada
em dúvida jurídica razoável, afasta a má-fé, pois a vitória de uma entre várias
interpretações razoáveis deve ocorrer com respeito ao princípio da confiança,
que protege a legítima expectativa dos indivíduos.
35.
Como já dito, se há dúvida jurídica
razoável, a ilegalidade é aqui designada de legítima e, nessa condição, não
insinua má-fé, pois apenas corresponde a uma intepretação razoável que foi
derrotada perante o órgão competente para dar a palavra final.
36.
A dúvida jurídica razoável não é um conceito
absoluto; pode ser escalonada em graus de intensidade. Embora não haja um
termômetro cirúrgico para essa medição, a prudência do jurista poderá aquilatar
esse grau de intensidade da dúvida jurídica razoável com olhos no nível de
amparo que as interpretações encontram na comunidade jurídica, na história do
direito e na tradição da sociedade.
37.
O grau de dúvida jurídica razoável dirá
também o grau de ilegalidade que terá as interpretações que vierem a ser
vencidas.
38.
Se, por exemplo, a interpretação vencida era
escorada em jurisprudência pacificada dos Tribunais Superiores, o grau de
dúvida jurídica razoável era altíssimo. A mudança de entendimento dos Tribunais
Superiores, derrotando uma interpretação anteriormente pacífica, entregará essa
interpretação vencida a uma situação de ilegalidade legítima. Essa ilegalidade,
diante do elevado grau da dúvida jurídica razoável, é de intensidade
baixíssima.
39.
Quanto menor o grau da ilegalidade legítima
menores devem ser as sanções jurídicas daí decorrentes. É nesse contexto que o
jurista, em um juízo de proporcionalidade, deve analisar quais os efeitos
jurídicos da ilegalidade legítima podem ser irradiados.
40.
Se a
ilegalidade era de intensidade baixíssima diante um cenário de dúvida jurídica
razoável, seria desproporcional admitir a produção de efeitos jurídicos punitivos
drásticos, mas seria proporcional acatar os efeitos jurídicos de baixa
repercussão contra quem confiou em um interpretação razoável que foi vencida. De
fato, em uma situação de grau baixíssimo de ilegalidade legítima, temos que
praticamente nenhum efeito sancionador deverá ser produzido, pois, nessa
situação, a dúvida jurídica era tão grande que a própria existência de uma
norma jurídica pode ser questionada. Afinal de contas, norma é texto e
contexto: se o contexto é extremamente turvo, a norma é incompleta.
41.
Em um exemplo extremo, seria desproporcional
punir, com prisão, quem, no século XVIII, impedia um negro de entrar em um
ambiente, embora possa ser proporcional impor-lhe um dever de abster-se a
reiterar essa prática doravante. Isso, porque, naqueles tempos sombrios de
escravidão, a comunidade jurídica brasileira era majoritária no sentido de
negar direitos aos negros. Embora esse fato (obstrução do negro a adentrar um
estabelecimento) possa ser considerado ilegal atualmente – e repugnante! –, os
efeitos jurídicos desse fato devem ser cindidos e, em seguida, devem ser
submetidos a um juízo de proporcionalidade próprio com olhos no grau de dúvida
jurídica razoável que imperava sobre o tema no século XVIII.
42.
Com base nesse juízo de proporcionalidade
entre o grau de ilegalidade e a intensidade dos efeitos jurídicos, o jurista
precisa individualizar a análise de cada um desses efeitos e negar a produção
daqueles efeitos que se afigurem desproporcionais. Os efeitos jurídicos da
ilegalidade podem ser cindidos; trata-se do que designamos de “cindibilidade
dos efeitos da ilegalidade legítima”.
43.
Por essa razão, o jurista, ao enfrentar a
árdua tarefa de interpretar o Direito, deve ter a prudência de, após eleger a
sua alternativa hermenêutica, investigar quais são as soluções efetivas que
poderão ser aplicadas ao caso concreto, com a postura humilde e empática de
reconhecer que, em um cenário de razoável dúvida hermenêutica, será injusto
infligir duras punições a quem adotou, em momento anterior, uma opção
hermenêutica diferente.
44.
Reconhecendo a Babel em que mergulharia a
sociedade com a coexistência de interpretações diversas de uma mesma norma, o
Estado de Direito elege órgãos com competência para definir a intepretação que
deve prevalecer.
45.
No âmbito da Administração Pública, há
vários agentes públicos com competência para decidir a interpretação jurídica
dentro do seu âmbito de atribuições. Havendo conflito entre eles, a
uniformização é feita pela prevalência da interpretação do agente público
hierarquicamente superior. Há, ainda, a participação de órgãos administrativos
de controle interno e externo que ingressam nessa disputa hermenêutica no seio
da Administração Pública, impondo a sua interpretação com a ameaça de punições disciplinares.
O Ministério Público também ocupa papel relevante nesse ambiente de
concorrência multitudinária de interpretações possíveis, valendo-se de
ferramentas coercitivas extrajudiciais (como as famosas “Recomendações”) e
judiciais (como as ações civis públicas, as ações de improbidade administrativa
e as ações penais)[9].
46.
Nessa profusão de interpretações devidas, o
Estado de Direito elege o Poder Judiciário como a última instância competente
para dar a interpretação final, que prevalecerá sobre aquela dada por outro
Poder. E, dentro do Poder Judiciário, o colorido mosaico hermenêutico também
estará presente diante da possibilidade de haver divergências entre os diversos
magistrados, de maneira que, por meio do sistema recursal e de outros
mecanismos processuais, caberá essencialmente aos Tribunais superiores
uniformizar a interpretação.
47.
Como se vê, na tentativa de obter um
monodiscurso normativo – que é essencial para garantir previsibilidade para os
indivíduos –, o Estado de Direito necessita criar um arranjo complexo e vasto
de instâncias destinadas à interpretação em uma estrutura que canalize para uma
uniformização de interpretação por um único órgão competente.
48.
Diante da natureza inexata do Direito,
entendemos que a ilegalidade legítima – assim entendida aquela contrariedade à
interpretação normativa vitoriosa que esteja amparada em uma dúvida jurídica
razoável – afasta a má-fé e, em consequência, impõe ao jurista o dever de
proceder à cindibilidade dos efeitos jurídicos a serem produzidos. Nesse
procedimento de “cindibilidade dos efeitos jurídicos”, o jurista deverá
realizar um juízo de proporcionalidade entre o grau da ilegalidade legítima e a
intensidade dos efeitos jurídicos para somente admitir a produção daqueles
efeitos que sejam considerados proporcionais.
49.
Há inúmeros exemplos desse princípio geral
de direito.
50.
No Direito Penal, por exemplo, afasta-se o
crime se a regra não era clara, ainda que sob o rótulo do instituto do erro de
direito. A consequência penal é muito grave para ser irradiado nesse caso.
51.
Ainda no Direito Penal, o Brasil conheceu um
curioso caso envolvendo o impeachment
da Presidente da República Dilma Rousseff por crime de responsabilidade. O
Senado Federal, no exercício da sua competência constitucional de interpretar o
parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal, entendeu que a melhor interpretação a ser
adotada é a de que a perda do cargo de Presidente da República (impeachement) pode ser aplicada sem
necessariamente infligir a pena pessoal de inabilitação para o exercício de
função pública por oito anos. O Senado Federal cindiu esses dois efeitos
jurídicos punitivos em relação ao crime de responsabilidade imputado à
Presidente Dilma.
52.
Na nossa leitura dos fatos, temos que o
Senado Federal, após reconhecer que as chamadas “pedaladas fiscais” tipificariam
um crime de responsabilidade, acabou reconhecendo que a má-fé da Presidente
nessa prática não era tão robusta assim, pois essa prática era costumeiramente
praticada por governantes anteriores. É como se houvesse um cenário de dúvida
jurídica razoável em torno da configuração do crime.
53.
Nesse sentido, o Senado Federal promoveu uma
cisão dos efeitos da conduta ilícita sob um critério de razoabilidade: admitiu
o impeachement por entender que a
Presidente Dilma não tinha condições de continuar governando o país, mas não
acatou a aplicação de uma punição estritamente pessoal, que era a pena de
inabilitação para o exercício público, pois a má-fé dela foi tida por atenuada
diante do contexto de relativa dúvida jurídica razoável que rondava em torno da
ilicitude das pedaladas fiscais.
54.
O impeachement
é uma sanção que envolve interesse institucional, ao passo que a perda de
direitos políticos é uma punição que envolve interesse meramente individual da pessoa
da Presidente Dilma e que a privaria de exercer atividades profissionais de
interesse privado por oito anos. Toda norma é sujeita a interpretações. E a
gravidade ou a existência de dúvida razoável na tipificação da conduta autorizam
o intérprete a fazer reduções interpretativas, quando necessário, mediante um
juízo de proporcionalidade.
55.
O Senado escolheu uma entre outras possíveis
do parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal para aceitar a
cindibilidade dos efeitos jurídicos do crime de responsabilidade pelo
Presidente da República em situações como a ora relatada. Essa manobra é - a
nosso sentir - plenamente admissível no âmbito da Ciência Jurídica, que se guia
pela lógica do razoável, e não pela do racional, na lembrança de Recaséns
Siches.
56.
Por fim, alerte-se: em nenhum momento, este
texto está a afirmar que a solução adotada foi a melhor ou a pior! Não estamos
a externar nossa opinião acerca da legitimidade ou não do impeachement no caso concreto. Esse não é o mérito do presente texto.
Aqui, está-se a tratar de uma etapa prévia a essa discussão de mérito; está-se
a cuidar da dúvida jurídica razoável, da ferramenta hermenêutica que designamos
de “cindibilidade dos efeitos da ilicitude” e da lembrança de que o Direito não
se reduz à subserviência à frieza do texto da lei, pois Direito é “texto e
contexto”.
57.
No Direito Administrativo, sanções
administrativas são afastadas quando o enquadramento típico vacila nas asas da
dúvida razoável.
58.
Assim, o Tribunal de Contas da União (TCU) não
pode aplicar multa ao gestor que praticou ato com base em uma interpretação obtida
em um cenário de dúvida jurídica razoável. O TCU já admitiu isso, alegando que
a dúvida jurídica razoável configuraria uma hipótese de erro escusável do
gestor, que, inclusive, havia se amparado em parecer jurídico favorável da
procuradoria. Confira-se este excerto de um julgado dessa corte administrativa:
“7.11. Se não se pode
acolher como regular o procedimento adotado pelo órgão para manter a proposta
mais vantajosa à Administração, pode-se, no mínimo, acolhê-lo como erro
escusável, ao menos em relação à própria Administração e ao erário, diante de
uma dúvida jurídica razoável, que ensejou inclusive parecer favorável da
procuradoria, afastando-se, com isso, a culpabilidade dos responsáveis.” (TCU, Acórdão
320/2009 – Plenário, Processo nº 002.014/2006-4, Rel. Min. José Jorge, Data da
Sessão 04/03/2009)
59.
Aliás, é por essa razão que as normas só
autorizam responsabilização do advogado público, do magistrado, defensores
públicos e do membro do Ministério Público nos casos de dolo ou fraude, pois
não se lhes pode punir por uma interpretação razoável adotada, especialmente em
uma situação de dúvida jurídica razoável (art. 38, § 2º, da Lei nº 13.327/2016;
art. 143, I, 181, 184 e 187 do CPC; e art. 40, Lei nº 13.140/2015). O velho
crime de exegese não pode ser ressuscitado.
60.
A propósito, a Advocacia-Geral da União (AGU),
com base na dúvida jurídica razoável, deixou de punir um procurador da fazenda
nacional que exerceu a advocacia privada durante o gozo de licença para trato
de assuntos particulares. É que a Lei Orgânica da AGU proíbe a advocacia
privada, mas não especifica se essa vedação se estende a quem está em licença
sem vencimento (ou seja, a quem não está no exercício do cargo). Nessa ocasião,
a AGU absolveu o procurador diante da dúvida jurídica razoável e, no mesmo ato,
dissipou essa dúvida, entendendo que a vedação alcança quem está em gozo de
licença (Despacho do Advogado-Geral da União que aprovou parcialmente o Parecer
nº 06/2009/MP/CGU/AGU). A partir dessa decisão, quem fosse advogar em licença
não poderia mais alegar dúvida jurídica razoável. Seja como for, a questão é
tão controversa que, anos depois, assumiu um novo chefe da AGU e mudou o
entendimento, de modo a passar a autorizar essa advocacia privada durante a
licença para trato de assuntos particulares (Despacho do Advogado-Geral da
União em 15 de abril de 2010, processo nº 00400.0232223/2009-89).
61.
Outrossim, a advocacia em causa própria por
membros da Advocacia-Geral da União foi admitida apesar de a Lei Orgânica da
AGU vedar o exercício da advocacia. Isso, porque, em uma análise da lei escrita
em conjunto com os fatos e os valores (teoria tridimensional do Direito), não
se encontra qualquer razão de justiça para vedar a advocacia em causa própria
nessa hipótese.
62.
Ainda no Direito Administrativo, agredirá o
senso básico de Justiça ceifar a vida funcional de um indivíduo, impondo-lhe as
pesadas sanções decorrentes da Lei de Improbidade Administrativa por uma
conduta que não se enquadrou na interpretação jurídica adotada a posteriori por um Tribunal. É nesse
contexto que se entende a interpretação do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
no sentido de que ilegalidade não é sinônimo de improbidade[10].
63.
É ainda nessa esteira que pacificou o
entendimento de que não cabe repetição de indébito de remunerações
indevidamente percebidas por servidores com base em divergência de
interpretações normativas, se havia boa-fé. A propósito, o STJ é bem
esclarecedor neste julgado:
“1. A discussão dos
autos visa definir a possibilidade de devolução ao erário dos valores recebidos
de boa-fé pelo servidor público, quando pagos indevidamente pela Administração
Pública, em função de interpretação equivocada de lei.
2. O art. 46, caput, da Lei n. 8.112/90 deve ser
interpretado com alguns temperamentos, mormente em decorrência de princípios
gerais do direito, como a boa-fé.
3. Com base nisso,
quando a Administração Pública interpreta erroneamente uma lei, resultando em
pagamento indevido ao servidor, cria-se uma falsa expectativa de que os valores
recebidos são legais e definitivos, impedindo, assim, que ocorra desconto dos mesmos,
ante a boa-fé do servidor público.” (STJ, REsp 1244182/PB, 1ª Seção, Rel.
Ministro Benedito Gonçalves, DJe 19/10/2012)
64.
Por fim, o STF já admitiu até mesmo a
convalidação de nomeação de empregados públicos sem concurso público diante da
existência de dúvida jurídica razoável acerca da exigibilidade do certame
público[11]. O caso concreto envolvia contratações de
pessoal sem concurso público no âmbito de uma empresa pública, a Infraero. A
exigibilidade de concurso público para empresas públicas era objeto de dúvida
jurídica razoável até o advento de acórdão do STF no Mandado de Segurança nº
21.322, publicado em 23/04/1993. Antes desse julgamento, a controvérsia
doutrinária era séria e razoável diante do aparente conflito entre o art. 37,
II, e o art. 173, § 1º, da Constituição Federal. Em suma, o STF entendeu que as
contratações feitas pela Infraero sem concurso público antes do julgamento do
referido mandado de segurança deveriam ser convalidadas em respeito ao cenário
de dúvida jurídica razoável que existia. É isso que se infere da leitura dos
votos, os quais, embora não façam alusão direta ao conceito de dúvida jurídica
razoável, evocam-no indiretamente ao tratar do princípio da segurança jurídica.
Ressalva-se também que, nesse caso concreto, havia outros fatores além da
dúvida jurídica razoável, como a existência de um processo seletivo rigoroso
feito pela Infraero (não era concurso, porém) e o fato de o Tribunal de Contas,
em um primeiro momento, ter consentido indiretamente com essas contratações.
Segue a ementa do referido julgado do STF:
“Mandado de Segurança.
2. Acórdão do Tribunal
de Contas da União. Prestação de Contas da Empresa Brasileira de
Infra-estrutura Aeroportuária - INFRAERO. Emprego Público. Regularização de
admissões.
3. Contratações
realizadas em conformidade com a legislação vigente à época. Admissões
realizadas por processo seletivo sem concurso público, validadas por decisão
administrativa e acórdão anterior do TCU.
4. Transcurso de mais
de dez anos desde a concessão da liminar no mandado de segurança.
5. Obrigatoriedade da
observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado
de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas
administrativamente.
6. Princípio da
confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um
componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito
público.
7. Concurso de
circunstâncias específicas e excepcionais que revelam: a boa fé dos
impetrantes; a realização de processo seletivo rigoroso; a observância do
regulamento da Infraero, vigente à época da realização do processo seletivo; a
existência de controvérsia, à época das contratações, quanto à exigência, nos
termos do art. 37 da Constituição, de concurso público no âmbito das empresas
públicas e sociedades de economia mista.
8. Circunstâncias que,
aliadas ao longo período de tempo transcorrido, afastam a alegada nulidade das
contratações dos impetrantes.
9. Mandado de Segurança
deferido.”
(STF, MS 22357, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 05-11-2004)
65.
No Direito Processual Civil, a dúvida
jurídica razoável preserva recursos de cabimento duvidoso em nome da princípio
da fungibilidade recursal e autoriza a modulação dos efeitos da jurisprudência
no tempo (art. 942, § 3º, do CPC). Aliás, essa possibilidade de modulação dos
efeitos da jurisprudência já é admitida há algum tempo na jurisprudência. O
STJ, por exemplo, ao seguir o STF para mudar o seu entendimento quanto ao termo
inicial do prazo recursal para o Ministério Público (MP) – data do recebimento
do feito na repartição, e não mais do “ciente” do membro do MP –, protegeu
quem, antes dessa mudança jurisprudencial, havia recorrido com base no
entendimento antigo. Isso, porque havia dúvida jurídica razoável na parte
recorrente, que dificilmente imaginaria que o STJ mudaria a sua interpretação
da legislação (STJ, HC 28.598/MG, 5ª T., Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 01/08/2005).
66.
A responsabilidade civil, em regra, decorre
da violação de um direito. É a interpretação conjunta dos arts. 186 e 927 do
CC.
67.
O art. 186 do CC reputa ilícito o ato que,
violando um direito, cause dano a outrem com culpa – culpa em sentido amplo, a
qual abrange também o dolo. Para esse ilícito, exigem-se três requisitos: dano,
culpa e violação de direito. Quem derruba uma casa (dano) propositalmente
(culpa em sentido amplo) não comete ato ilícito se foi contratado para tanto
pelo proprietário da casa (não há violação de direito). Essa regra do art. 186
do CC decorre do princípio do neminem
laedere – também batizado de princípio do alterum non laedere ou de princípio da incolumidade das esferas
jurídicas –, que estabelece que ninguém deve lesar outrem e que foi extraído
desta milenar definição de Ulpiano no antigo Direito Romano: “Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique
tribuere” (os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não lesar
a outrem, dar a cada um o que é seu).
68.
O art. 927 do CC, apontando um dos efeitos
do art. 186 do CC, aponta que o ato ilícito gerará o dever de indenizar, porque
houve dano.
69.
Há exceções a essa regra. Um ato lícito pode
gerar dever de indenizar. Mas isso é excepcional e depende de lei expressa, a
exemplo dos casos dos arts. 929, 930 e 1.285 do CC. Essa situação excepcional não
é o foco deste estudo.
70.
Como a violação de direito é essencial para
a caracterização do ato ilícito no Direito Civil (art. 186 do CC), é
fundamental que a regra jurídica seja clara de antemão. Isso decorre do
princípio da legalidade, que só vincula as pessoas a leis prévias, e do
princípio da segurança jurídica, que prestigia a nitidez das normas. Isso é um
pressuposto do Estado de Direito. Se a norma textual é de duvidosa
interpretação (dúvida razoável), o jurista deverá averiguar o grau de dúvida
jurídica que ronda a definição da norma diante dos casos concretos, de modo a,
por um juízo de razoabilidade, afastar consequências jurídicas que sejam
desarrazoadas.
71.
No Direito Civil, a dúvida jurídica razoável
também pode afastar ou, a depender do seu grau, atenuar a responsabilidade
civil, por ser injusto punir o particular em um cenário causado pelo próprio
Estado, que não deixou as regras claras. Se a dúvida jurídica razoável for de
intensidade elevada, entendemos que a responsabilidade civil deve ser
totalmente excluída. Se, porém, a intensidade de dúvida não for tão elevada,
seria cabível admitir parcialmente a responsabilidade civil, pois o requisito
da “violação de direito” (art. 186, CC) estaria presente apenas em parte. A
consequência desse acolhimento parcial da responsabilidade civil é a redução
proporcional do valor da indenização.
72.
A falta de clareza normativa é um problema
do Estado e do sistema democrático, de modo que o particular não pode ser
punido por, diante dessa névoa normativa, ter adotado uma interpretação que
posteriormente foi rechaçada pelos tribunais. Enquanto a dúvida jurídica razoável
não for dissolvida, não se pode punir os particulares com sanções jurídicas
desproporcionais. É claro que, depois que os tribunais se manifestarem sobre um
determinado caso, a dúvida jurídica razoável estará dissolvida ou atenuada. O
problema, porém, é como tratar os particulares envolvidos nos casos
paradigmáticos que geraram a jurisprudência. Não se os pode punir por terem
adotado uma via hermenêutica razoável que, posteriormente, foi recusada pelos
tribunais.
73.
Os particulares não podem ser sacrificados
em prol dos demais, que se beneficiarão com o fim da dúvida jurídica razoável. Isso
acontece quando os tribunais, diante de uma situação de dúvida jurídica
razoável, escolhem uma interpretação e pune o indivíduo que, antes da
pacificação hermenêutica, teve o azar de abraçar uma interpretação vencida. Em
situações como essas, o particular envolvido no leading case é entregue em holocausto vicário em favor dos demais
indivíduos, que, cientes da interpretação vencedora, saberão qual interpretação
a adotar. Isso é injusto. O particular envolvido no leading case não pode ser punido com sanções desproporcionais. Temos
que a responsabilidade civil não pode ser usada para transformar particulares
em “bois de piranha hermenêuticos”, em um “mártir hermenêutico” ou em “bocas de
canhão hermenêuticas”.
74.
Quanto aos que sofreram danos, eles não
podem exigir indenização de quem agiu sob dúvida jurídica razoável, pois aí
falta o requisito da violação de direito exigida para a caracterização do ato
ilícito. Se alguém deveria pagar a indenização, seria o legislador – que não
deixou as regras do jogo claras –, mas, como vige o regime da sua
irresponsabilidade e como isso decorre de falhas no sistema democrático, nada
há a fazer. Em última instância, a situação de lacuna normativa é culpa de
todos os indivíduos, que não exerceram adequadamente o seu poder democrático
diretamente ou por meio de seus representantes. Omissão normativa do Estado não
pode recair sobre os ombros do homem comum, do “the man on the Clapham bus”[12], que, sem formação jurídica, tem de enfrentar
um anuviado ambiente de dúvida jurídica razoável e arriscar escolher uma
interpretação razoável.
75.
Apesar de poder afastar ou atenuar a
responsabilidade civil, a dúvida jurídica razoável poderá não afastar
consequências civis menos gravosas, como a de originar uma obrigação de não
fazer daqui para frente. O intérprete pode e deve modular os efeitos da
interpretação da norma mesmo no Direito Civil, avaliando, sob a ótica da
razoabilidade, que consequências civis são razoáveis. O art. 942, § 2º, do CPC,
que prevê essa modulação dos efeitos de interpretações jurisprudenciais, não
deve ser aplicado apenas no caso de mudanças de jurisprudências pacificadas,
mas também no caso de pacificação de questões inéditas ao redor do qual
pairavam dúvidas jurídicas razoáveis.
76.
Em reforço ao exposto, a própria previsão de
anulabilidade do negócio jurídico por erro de direito (art. 138, III, do CC) é
o reconhecimento de que o ordenamento jurídico protege o particular atarantado
por um clima de dúvida jurídica razoável. O que propomos aqui é a extensão
disso para outras consequências jurídicas, como a responsabilidade civil, a
depender de um juízo de proporcionalidade entre o grau da dúvida jurídica e a
gravosidade da consequência jurídica civil disponível.
77.
Portanto, a depender de grau de intensidade
da dúvida jurídica razoável, o requisito “violação do direito” previsto no art.
186 do CC deve ser tido por total ou parcialmente descaracterizado, e, em
consequência, a responsabilidade civil deve ser excluída total ou parcialmente
(atenuada, com redução proporcional do valor da indenização).
78.
Como exemplo, temos que, enquanto não for
pacificada a discussão jurídica pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso
Extraordinário nº 845.779 (atualmente com pedido de vista), parece-nos indevido
condenar estabelecimentos comerciais a pagar dano moral a transexual que foi
impedido de usar o banheiro feminino, quando o gênero constante de seus
documentos de identificação apontava para o sexo masculino. No caso concreto, o
STF está a analisar se um Shopping deve ou não pagar dano moral a transexual
que, por meio de um segurança, foi impedido de adentrar o banheiro feminino
pelo fato de seu documento de identidade indicar o sexo masculino. Por
enquanto, dois ministros estão tendentes a reformar o acórdão do tribunal local
para condenar o Shopping a pagar indenização no valor de R$ 15.000,00.
79.
O tema acerca do uso do banheiro por transexuais
ainda é controverso. A tradição jurídica até o presente momento é no sentido de
vedar uso de banheiros por quem não tenha, formalmente, o gênero pertinente,
levando em conta os dados constantes dos registros públicos. A própria
formatação arquitetônica do banheiro é feita levando em conta o gênero
biológico das pessoas. Como se vê, há dúvida jurídica razoável sobre esse tema.
80.
No próprio Judiciário, o tema está
controverso, pois, no caso concreto supracitado, o Tribunal local negou a
existência de ilicitude da conduta, o que demonstra que a própria comunidade
jurídica está seriamente dividida quanto à ilicitude da obstrução do
transexual. Parece desproporcional que, em um cenário como esse, em que os
próprios juristas estão divididos, considerar que o particular violou o direito
(art. 186, CC) e, por isso, deve pagar indenização.
81.
Temos que o cenário de dúvida jurídica
razoável acerca do tema deve livrar os estabelecimentos da sanção grave da
responsabilização civil (obrigação de indenizar), embora não os deva isentar do
dever de, doravante, passar a agir em consonância com o eventual entendimento
do STF que venha a prestigiar o gênero psíquico em detrimento do registral (obrigação
de fazer ou de não fazer). Em outras palavras, seria até possível entender que,
enquanto houver dúvida jurídica razoável, a conduta de barrar o transexual a
adentrar o banheiro feminino é ilícita[13], mas daí não se poderão extrair efeitos
jurídicos desproporcionais, como o da condenação ao pagamento de indenização
por dano moral. No caso concreto, é desproporcional tomar o Shopping como
“mártir hermenêutico” ou como “boca de canhão hermenêutico”, punindo-o com
indenização por dano moral, com o objetivo de orientar os demais particulares
acerca da interpretação jurídica que deve prevalecer.
82.
Em resumo, no caso presente, em razão da
dúvida jurídica razoável, convém promover a cindibilidade dos efeitos
jurídicos, de modo a, sob um juízo de proporcionalidade, afastar a condenação
ao pagamento de indenização, mas admitir a imposição de uma obrigação de não
fazer doravante, após a pacificação da jurisprudência (ou seja, após o fim do
cenário de dúvida jurídica razoável). A recusa de banheiro para transexual pode
ser considerada ilícita (ilicitude legítima), mas, diante da dúvida jurídica
razoável, daí não se poderiam extrair efeitos graves (como uma condenação a
indenizar danos morais ou uma sanção penal), embora se possa admitir efeitos
menos severos (como uma obrigação de não fazer).
83.
Futuramente, após a superveniência de
entendimento do STF, a dúvida jurídica será razoável.
84.
O STJ, ao nosso sentir, se equivocou quando
condenou o dono de uma padaria a pagar R$ 15.000,00 a título de indenização de
dano moral em favor de um vizinho que morava em um apartamento do mesmo condomínio
e que sofria com os ruídos provocados de madrugada pelas máquinas da padaria
(REsp 1096639/DF, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 12/02/2009).
85.
Nesse caso, havia uma convenção condominial
que era textual em prever a destinação exclusivamente comercial pelos
condôminos. Acontece que, por muitos anos, o vizinho dava destinação
residencial, violando o texto da convenção. Com base nisso, o STJ proibiu a
padaria de ligar as máquinas de madrugada (obrigação de não fazer) e a pagar
indenização por dano moral no valor de R$ 15.000,00 ao morador, pois, em nome
da supressio, era direito do vizinho
morar no imóvel e exigir dos demais condôminos o respeito às regras próprias de
condomínios de destinação mista (residencial e comercial), como o silêncio na
madrugada. A nosso sentir, o dono da padaria estava diante de uma dúvida
jurídica razoável: o texto da convenção de condomínio era nítido em protegê-lo.
É desproporcional impor-lhe o pesado ônus de arcar com indenização por ter seguido
um caminho hermenêutico razoável. A decisão do STF se baseou em princípios (o
da boa-fé objetiva, do qual decorre a supressio),
que, por sua natureza, são de subjetividade e volatilidade inegáveis. Ao nosso
aviso, o STJ deveria ter afastado a condenação por dano moral por força da
dúvida jurídica razoável (que afasta a ilicitude do art. 186 do CC para esse
efeito), embora pudesse condenar a padaria a uma obrigação de não fazer (abster
de ligar as máquinas de madrugada doravante). O STJ deveria ter impresso efeito
ex nunc ao seu entendimento que
debelou a dúvida jurídica razoável: doravante a destinação mista do condomínio
deve ser observada.
86.
O STJ entende que, embora a negativa
indevida de cobertura médico-assistencial por plano de saúde possa caracterizar
dano moral como regra geral, há exceção na hipótese de existir um cenário de
dúvida jurídica razoável. Assim, se houver dúvida jurídica razoável acerca da
interpretação das normas legais e das cláusulas contratuais, a conduta da
operadora de eleger ume interpretação razoável para negar a cobertura ao
consumidor não caracteriza o requisito da “violação de direito” de que trata o
art. 186 do CC e, por isso, não credencia a responsabilização civil por danos
sofridos pelo consumidor. Convém a transcrição do seguinte excerto deste
julgado:
“11. Em regra, a recusa
indevida pela operadora de plano de saúde de cobertura médico-assistencial gera
dano moral, porquanto agrava o sofrimento psíquico do usuário, já combalido
pelas condições precárias de saúde, não constituindo, portanto, mero dissabor,
ínsito às hipóteses correntes de inadimplemento contratual.
12. Há situações em que
existe dúvida jurídica razoável na interpretação de cláusula contratual, não
podendo ser reputada ilegítima ou injusta, violadora de direitos imateriais, a
conduta de operadora que optar pela restrição de cobertura sem ofender, em
contrapartida, os deveres anexos do contrato, tal qual a boa-fé, o que afasta a
pretensão de compensação por danos morais.
13. Não há falar em
dano moral indenizável quando a operadora de plano de saúde se pautar conforme
as normas do setor. No caso, não havia consenso acerca da exegese a ser dada ao
art. 10, incisos I e V, da Lei nº 9.656/1998.
14. Recurso especial
parcialmente provido.”
(STJ, REsp 1632752/PR,
3ª Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, DJe 29/08/2017)
87.
Um outro caso curioso procede do STJ também.
Atualmente, a jurisprudência do STJ é pacificada no sentido de que é nula a
cláusula de contrato de plano de saúde que exclui a cobertura de stent. Não há dúvida jurídica razoável
sobre isso atualmente. Se algum plano de saúde negar essa cobertura com base em
cláusula contratual nula, cometerá ato ilícito, pois o tema já é pacificado.
Todavia, em um caso concreto analisado pelo STJ, estava-se a analisar o
cabimento ou não da condenação de um plano de saúde a pagar dano moral por ter,
em época anterior à pacificação da jurisprudência, negado a cobertura de stent com base em uma cláusula
contratual. Nesse caso concreto, o STJ entendeu que não cabia a condenação,
porque, à época da negativa, havia dúvida jurídica razoável sobre a validade ou
não de cláusulas que excluíssem as stents
do âmbito de cobertura dos planos de saúde. A dúvida jurídica razoável aí
decorre de uma cláusula contratual controvertida. Confira-se a ementa
esclarecedora do julgado:
AGRAVO REGIMENTAL.
RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE COBERTURA. DEVER DE INDENIZAR.
CLÁUSULA CONTRATUAL CONTROVERTIDA.
1. O mero
descumprimento de cláusula contratual controvertida não enseja a condenação por
dano moral.
2. Embora a
jurisprudência tenha posteriormente se consolidado no sentido da invalidade de
cláusula que exclua a cobertura de stent, no caso em exame, a circunstância de
o contrato não ter sido adaptado à Lei 9.656/98 emprestava, na época em que
ocorridos os fatos, relevância à discussão travada pelo réu, tese acolhida pelo
relator originário da apelação 3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no REsp
1457475/MG, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em
16/09/2014, DJe 24/09/2014)
88.
Como se vê, o STJ já tem admitido que a
dúvida jurídica razoável exclua a responsabilidade civil diante da falta do
requisito “violação de direito”, previsto no art. 186 do CC.
89.
O STJ condenou uma instituição financeira
(que era credora fiduciária) a pagar indenização por dano moral em razão de ter
conseguido a busca e apreensão de um veículo alienado fiduciariamente em razão
do inadimplemento de apenas uma das vinte e quatro prestações do financiamento.
O STJ, à época, entendia que era aplicável a teoria do adimplemento substancial
para impedir a busca e apreensão de veículos alienados fiduciariamente quando o
devedor fiduciante tivesse incorrido em inadimplência após ter pago uma
quantidade expressiva de prestações. O STJ mudou o entendimento e atualmente
rejeita essa teoria em casos de busca e apreensão para não tornar inúteis as
garantias reais (STJ, REsp 1622555/MG, 2ª Seção, Rel. Ministro Marco Buzzi, Rel.
p/ Acórdão Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 16/03/2017).
90.
Temos por atécnica a decisão supracitada do
STJ que condenou o banco a pagar indenização por dano moral. Ainda que se
pudesse considerar que a teoria do adimplemento substancial fosse aplicável
para impedir a busca e apreensão de veículos diante do inadimplemento de apenas
a última das 24 prestações de um financiamento, o fato é que o credor
fiduciário se amparou, no mínimo, em uma situação de dúvida jurídica razoável.
A definição do que era adimplemento substancial era controverso. E mais: a
própria teoria do adimplemento substancial não tem assento expresso no texto da
lei, mas decorre de princípios, de formulação doutrinária e, sobretudo, da
análise de cada caso concreto. Temos, assim, que, ainda que se pudesse impedir
a busca e apreensão mediante a aplicação da teoria do adimplemento substancial,
consideramos desproporcional punir o credor fiduciário ao pagamento de
indenização por dano moral.
91.
Temos que aí era o caso de aplicar a
cindibilidade dos efeitos da ilegalidade diante da dúvida jurídica razoável e
do juízo de proporcionalidade. Embora a conduta do banco de ajuizar a ação de
busca e apreensão possa ser considerada ilícita à luz do entendimento que
vigorava na época, somente deveria ter sido admitida, como efeito dessa
ilegalidade[14], a improcedência do pedido, de modo que o
efeito drástico da condenação a pagar dano moral deveria ter ser afastado
diante do fato de que a dúvida jurídica razoável afastaria um dos requisitos da
responsabilidade civil: a violação de direito (art. 186, CC).
92.
Decisões judiciais baseadas em princípios
devem ter a humildade e a empatia de reconhecer que os indivíduos não possuem
clareza em identificar as regras procedentes da massa subjetiva e amorfa dos
princípios, razão por que, em situações como essa, a dúvida jurídica razoável
tem grandes chances de estar presente com aptidão para, por meio da
“cindibilidade dos efeitos jurídicos da ilegalidade”, afastar repercussões
desproporcionais.
93.
O estudo desagua na conclusão de que,
havendo um cenário de dúvida jurídica razoável, o jurista deverá servir-se da
“cindibilidade dos efeitos jurídicos da ilegalidade” para, sob um juízo de
proporcionalidade, afastar consequências drásticas e desproporcionais.
94.
O fundamento jurídico dessa ilação são os
princípios da legalidade, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé (que é
mãe do princípio da confiança) e da democracia (que estabelece que é dever do
Estado deixar claras as regras do jogo para os indivíduos por meio de
mecanismos democráticos).
95.
Sob essa premissa, o presente estudo conclui
que:
a)
a responsabilidade civil deve ser excluída ou
atenuada a depender do grau de dúvida jurídica razoável, tendo em vista que esta
afasta total ou parcialmente um dos requisitos da responsabilidade civil, a
“violação de direito” (art. 186 do CC);
b)
enquanto não sobrevier decisão do STF acerca do
direito de transexual adentrar o banheiro feminino, há dúvida jurídica razoável
a excluir a responsabilidade por um juízo de proporcionalidade, mas se
admitindo a produção de efeitos menos drásticos, como a imposição de uma
obrigação de não fazer em nome da cindibilidade dos efeitos jurídicos;
c)
o desmembramento do impeachement em relação à pena de inabilitação para o exercício de
função pública por oito anos é uma entre outras interpretações possíveis do
art. 52, parágrafo único, da Constituição Federal, de maneira que, havendo
dúvida jurídica razoável a favor do Presidente da República na conduta
tipificada como crime de responsabilidade, a proporcionalidade autorizaria
segregar a sanção do impeachement –
que é de interesse institucional na manutenção da governabilidade do País – da
punição pessoal de cassação de direitos políticos – que é estritamente pessoal,
a exemplo do que sucedeu no ano de 2016;
d)
é indevida a aplicação de sanção administrativa
contra agente público que tenha praticado ato amparado em dúvida jurídica
razoável;
e)
mera irregularidade não é improbidade
administrativa, especialmente quando há dúvida jurídica razoável;
f)
a dúvida jurídica razoável é acolhida em todos
os ramos do Direito, com inclusão do Processo Civil, do que dão exemplos a
fungibilidade recursal e a modulação dos efeitos da jurisprudência;
g)
A modulação dos efeitos de interpretações
jurisprudenciais prevista no art. 942, § 2º, do CPC não deve ser aplicada apenas
no caso de mudanças de jurisprudências pacificadas, mas também no caso de
pacificação de questões inéditas nos Tribunais ao redor do qual pairavam
dúvidas jurídicas razoáveis;
h)
O jurista deve ter cuidado quando, com base em
princípios, for considerar ilícitas condutas de particulares baseadas na
interpretação literal do texto de lei e de contratos. Nesses casos, o jurista
deve averiguar a existência de eventual cenário de dúvida jurídica razoável
para, por meio da cindibilidade dos efeitos jurídicos, afastar sanções
desproporcionais, como a indenização por dano moral. Com base nisso,
consideramos inadequadas as decisões do STJ que condenou ao pagamento de
indenização por danos morais um condômino que se baseou na convenção de
condomínio para instalar em uma padaria (STJ invocou a supressio) e uma instituição financeira que se valeu da ação de
busca e apreensão diante do inadimplemento de uma prestação de um financiamento
feito para a aquisição de um veículo (STJ se valeu da teoria do inadimplemento
mínimo).
96.
Em princípio, as conclusões acima
dispensariam mudanças legislativas, porque já estariam implícitas no
ordenamento. Todavia, considerando que a falta de previsão textual da
importância da dúvida jurídica razoável acaba deixando esse exame relevantíssimo
de lado em muitos julgamentos feitos por órgãos administrativos e judiciais,
convém a realização de duas modificações legislativas envolvendo situações
demasiadamente sensíveis.
97.
A primeira é no sentido de deixar claro que
o gestor público jamais pode ser responsabilizado administrativamente quando
praticar um ato escorado em dúvida jurídica razoável, a qual é presumida quando
ele tiver se amparado parecer jurídico emitido por membro da Advocacia Pública.
Essa previsão é relevantíssima, pois inúmeros agentes públicos receiam assumir
cargos de gestão pelo temor de virem a ser responsabilizados pessoalmente por
terem adotado uma interpretação da norma em sentido diverso daquele que,
posteriormente, virá a ser adotado por órgãos de controle. Parece-nos que o
art. 38 da Lei nº 13.327, de 29 de julho de 2016, é o lugar mais adequado para
recepcionar uma previsão legislativa similar.
98.
A segunda alteração legislativa é deixar
mencionado no art. 186 do CC que a dúvida jurídica razoável pode excluir ou
atenuar a responsabilidade civil.
[1] Consultor Legislativo do Senado
Federal na área de Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único
aprovado no concurso). Advogado. Ex-Advogado da União. Ex-Assessor de Ministro
do STJ. Professor de Direito Civil (IDP-Brasília). Coordenador da Pós-Graduação
de Direito Imobiliário na Atame/DF. Bacharel e Mestre em Direito pela
Universidade de Brasília (UnB). Blog: http://profcarloselias.blogspot.com.br/. E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br.
[2] A lembrança é de Cristiano Carrilho
S. de Mereiros (apud OLIVEIRA,
Carlos Eduardo Elias de. Competência
para fiscalizar atividade jurídica de membros da advocacia pública federal: TCU
ou órgão correcional próprio? Disponível em: http://jus.com.br/artigos/24056/competencia-para-fiscalizar-atividade-juridica-de-membros-da-advocacia-publica-federal-tcu-ou-orgao-correcional-proprio#ixzz3ZU2XJbu5. Publicado
em abril de 2013).
[3] Para evitar aprofundamentos
inconvenientes ao objetivo deste texto, limitamo-nos a recordar que há inúmeros
discursos envolvendo Direito, Estado, Sociedade e Economia para definir as
soluções jurídicas mais adequadas e há diversos debates sobre o comportamento a
ser adotado pelo jurista. Para detalhamentos, recomendamos nossa dissertação de
mestrado, disponível neste sítio eletrônico: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/23903/1/2016_CarlosEduardoEliasdeOliveira.pdf.
[4] TARTUCE,
Flávio. Direito Civil, 1: Lei de
Introdução e Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense – São Paulo: Método,
2014, pp. 112-117.
[5] TARTUCE,
Flávio. Direito civil, 1: Lei de
introdução e parte geral. Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: Método, 2014.
[6] Discurso
do Ministro Gilmar Mendes em homenagem ao Ministro Eros Roberto Grau. Em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/homenagemErosGrau.pdf.
[8]
Ressalva-se que o autor estava a criticar a ausência de critérios objetivos no
julgamento de conflitos constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, por
conta da adoção do pensamento de Alexy. Todavia – talvez em função da própria
natureza fluida do Direito, na esteira da teoria do conhecimento do Miguel
Reale –, o aludido autor não oferece uma solução efetivamente objetiva em
substituição. Concordamos que a teoria de Alexy não é mais adequada e que há
outras melhores, embora estas também conspurcam-se com os inevitáveis vestígios
da subjetividade. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/21646/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga
[9] Temos que, no âmbito da
Administração Pública, a Advocacia Pública foi constitucionalmente eleita para
dar a palavra final na interpretação da norma jurídica, de modo que nenhum
órgão administrativo de controle interno ou externo teria competência para
superar essa orientação. Só o Poder Judiciário poderia derrubar a interpretação
dada pela Advocacia Pública no seio da Administração.
[10]
Confira-se este julgado:
“A jurisprudência desta Corte
Superior de Justiça é no sentido de que não se pode confundir improbidade com
simples ilegalidade. A improbidade é a ilegalidade tipificada e qualificada
pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Assim, para a tipificação das
condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92 é indispensável, para a
caracterização de improbidade, que o agente tenha agido dolosamente e, ao
menos, culposamente, nas hipóteses do artigo 10.” (STJ, AgRg no REsp
1355136/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em
16/04/2015, DJe 23/04/2015)
[11] A lembrança foi de José Vicente
Santos de Mendonça (MENDONÇA, José Vicente Santos de. Estatais com poder de policia; por que não?. In: Revista de Dreito
Administrativo. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/7958/6823.
[12]
Essa expressão inglesa se reporta ao homem comum, como lembra Ronald Coase
(2016, p. 4). Clapham é um bairro
muito popular de Londres, de modo que a referência a um homem em um ônibus
nesse local reporta-se a uma situação comum.
[13] Seria o que, mais acima, designamos
de ilicitude legítima, assim entendida aquela que, no ambiente de dúvida
juridical razoável, se ampara em uma interpretação que veio a ser vencida.
[14] Aí seria o que chamamos de
“ilegalidade legítima”, porque escorada em dúvida jurídica razoável.