domingo, 19 de novembro de 2017

Ninguém pode dar o que não tem (nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet): um episódio no avião


Ninguém pode dar o que não tem (nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet): um episódio no avião





Estava a lembrar de um episódio que sucedeu comigo. Após adentrar a aeronave com as minhas bagagens de mão, fiz como manda o protocolo: coloquei uma bagagem no cômodo de cima e a outra debaixo da poltrona.

Continuei em pé, porque lembrei que eu tinha esquecido de pegar o livro de Direitos Reais que iria me fazer companhia ao longo do voo. Eu pensava em ler um pouco sobre a velha hipoteca. Fiquei em pé, esperando os demais passageiros acomodarem-se para, em seguida, eu poder recolher o meu companheiro de viagem.

Observei que uma dupla de aparência pacífica iria sentar-se atrás de mim. Pareceu-me ser uma mãe com o seu filho adulto. Os dois vestiam roupas beges, de textura e cortes próprios de quem ama a liberdade e a natureza e de quem não liga para questões materiais. O rapaz estava com a barba e o cabelo a fazer e calçava uma sandália de materiais rústicos. A mãe replicava a aparência de amante da natureza e acrescentava ao visual um brinco que balançava uma vistosa e colorida pena de passarinho. E os dois carregavam, como bagagens de mão, uma sacola e uma mochila de tecido de cor de palha.

Por um momento, pensei que se tratava de um dueto da paz.

Eu, porém, estava redondamente errado! A dupla não estava para a paz. É que os dois passaram a exibir comportamento indelicado, e eu fui a vítima.

O filho, ao tentar guardar todas as suas sacolas no cômodo de cima da aeronave, deparou-se com a minha bagagem a impedir que os seus pertences ficassem juntos. O rapaz acendeu a sua ira e saiu a disparar ataques indiretos a mim em voz alta.

Como eu estava de terno, a turva mente do rapaz fantasiou que eu era algum político de Brasília e passou a disparar, incessantemente, ofensas como estas:

-       “Não consegui colocar todas as nossas bagagens lá em cima, porque o bonitinho ali invadiu o cômodo de cima”.

-       “Esses políticos de Brasília não respeitam nada”.

Fiz ouvidos moucos. Percebi que se tratava de um delírio de quem padecia de virtudes interiores.

Os  insultos não cessaram. Sem exagero, o rapaz persistiu nos seus ataques sem dar sinais de cansaço. E o pior: ele repetia as mesmas informações, mas usando outras palavras (paráfrases). Já haviam se passado uns 3 minutos de surto do rapaz, sob o olhar de consentimento de sua mãe.

Fiquei encurralado e tive de externar minhas razões, rompendo o meu costume de não reagir a ataques gratuitos. Ainda de pé, olhei nos olhos trêmulos e saltitantes do rapaz e – voz firme – disse:

-       “Com licença, em primeiro lugar, eu não sou político” (e, se fosse, isso não significaria descompromisso com a ética).

-       “ Em segundo lugar, não invadi espaço algum do senhor. Eu segui o protocolo da aeronave: coloquei uma bagagem no cômodo de cima e uma debaixo da poltrona” (e com isso eu indiretamente estava a apontar a infração do afoito rapaz em querer despejar todas as suas malas no cômodo de cima).”

O rapaz e a mãe silenciaram-se.

Talvez tivesse sido conveniente eu ter preservado o silêncio, pois, se o rapaz respondesse com algum ataque físico, eu teria de me valer dos meus conhecimentos de judô para aplicar-lhe um harai-goshi e fazê-lo repousar no corredor do avião. Com o tremor da queda, talvez se cumpriria a profecia que as aeromoças costumam anunciar: “Máscaras de oxigênio cairiam automaticamente” (brincadeira!).

O meu silêncio, porém, teria feito o rapaz prosseguir, durante as duas horas de viagem, a fazer paráfrases injuriosas.

Debelada a belicosidade do rapaz, peguei o meu livro de Direito Reais, sentei e segui a viagem na leitura de um dos mais antigos direitos reais de garantia, a hipoteca. Trata-se de um direito real que os romanos antigos desenvolveram com maestria.

E, por falar nos romanos, lembrei da velha lição deles no sentido de que ninguém pode dar mais do que efetivamente tem (nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet). Eu não podia esperar um comportamento educado de quem, no interior, não tinha educação. Percebi que a indelicadeza do rapaz decorria do fato de que provavelmente o seu interior não devia ter valores de respeito ao próximo.

Obs.: a referência à aparência da dupla foi apenas para tentar contextualizar o caso. Ser educado e respeitar o próximo independem das preferências pessoais de cada um. Infelizmente já vi atos de indelicadeza de pessoas com diferentes indumentos. O problema não está nas vestimentas, e sim no interior. É que, para ser educado com os demais, as pessoas precisam internalizar os bons valores de convivência pessoal, porque, como ensinavam os velhos romanos, ninguém pode dar aquilo que não tem (nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet).


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