Ninguém pode dar o que não tem (nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet): um episódio no avião
Estava a lembrar de um episódio que sucedeu comigo. Após
adentrar a aeronave com as minhas bagagens de mão, fiz como manda o protocolo:
coloquei uma bagagem no cômodo de cima e a outra debaixo da poltrona.
Continuei em pé, porque lembrei que eu tinha esquecido de
pegar o livro de Direitos Reais que iria me fazer companhia ao longo do voo. Eu
pensava em ler um pouco sobre a velha hipoteca. Fiquei em pé, esperando os
demais passageiros acomodarem-se para, em seguida, eu poder recolher o meu
companheiro de viagem.
Observei que uma dupla de aparência pacífica iria
sentar-se atrás de mim. Pareceu-me ser uma mãe com o seu filho adulto. Os dois
vestiam roupas beges, de textura e cortes próprios de quem ama a liberdade e a
natureza e de quem não liga para questões materiais. O rapaz estava com a barba
e o cabelo a fazer e calçava uma sandália de materiais rústicos. A mãe
replicava a aparência de amante da natureza e acrescentava ao visual um brinco
que balançava uma vistosa e colorida pena de passarinho. E os dois carregavam,
como bagagens de mão, uma sacola e uma mochila de tecido de cor de palha.
Por um momento, pensei que se tratava de um dueto da paz.
Eu, porém, estava redondamente errado! A dupla não estava
para a paz. É que os dois passaram a exibir comportamento indelicado, e eu fui
a vítima.
O filho, ao tentar guardar todas as suas sacolas no cômodo
de cima da aeronave, deparou-se com a minha bagagem a impedir que os seus
pertences ficassem juntos. O rapaz acendeu a sua ira e saiu a disparar ataques
indiretos a mim em voz alta.
Como eu estava de terno, a turva mente do rapaz fantasiou
que eu era algum político de Brasília e passou a disparar, incessantemente, ofensas
como estas:
- “Não
consegui colocar todas as nossas bagagens lá em cima, porque o bonitinho ali
invadiu o cômodo de cima”.
- “Esses
políticos de Brasília não respeitam nada”.
Fiz ouvidos moucos. Percebi que se tratava de um delírio
de quem padecia de virtudes interiores.
Os insultos não
cessaram. Sem exagero, o rapaz persistiu nos seus ataques sem dar sinais de
cansaço. E o pior: ele repetia as mesmas informações, mas usando outras
palavras (paráfrases). Já haviam se passado uns 3 minutos de surto do rapaz,
sob o olhar de consentimento de sua mãe.
Fiquei encurralado e tive de externar minhas razões,
rompendo o meu costume de não reagir a ataques gratuitos. Ainda de pé, olhei
nos olhos trêmulos e saltitantes do rapaz e – voz firme – disse:
- “Com
licença, em primeiro lugar, eu não sou político” (e, se fosse, isso não
significaria descompromisso com a ética).
- “
Em segundo lugar, não invadi espaço algum do senhor. Eu segui o protocolo da
aeronave: coloquei uma bagagem no cômodo de cima e uma debaixo da poltrona” (e
com isso eu indiretamente estava a apontar a infração do afoito rapaz em querer
despejar todas as suas malas no cômodo de cima).”
O rapaz e a mãe silenciaram-se.
Talvez tivesse sido conveniente eu ter preservado o
silêncio, pois, se o rapaz respondesse com algum ataque físico, eu teria de me
valer dos meus conhecimentos de judô para aplicar-lhe um harai-goshi e fazê-lo repousar no corredor do avião. Com o tremor
da queda, talvez se cumpriria a profecia que as aeromoças costumam anunciar: “Máscaras
de oxigênio cairiam automaticamente” (brincadeira!).
O meu silêncio, porém, teria feito o rapaz prosseguir,
durante as duas horas de viagem, a fazer paráfrases injuriosas.
Debelada a belicosidade do rapaz, peguei o meu livro de
Direito Reais, sentei e segui a viagem na leitura de um dos mais
antigos direitos reais de garantia, a hipoteca. Trata-se de um direito real que
os romanos antigos desenvolveram com maestria.
E, por falar nos romanos, lembrei da velha lição deles no
sentido de que ninguém pode dar mais do que efetivamente tem (nemo plus iuris ad alium transferre potest
quam ipse habet). Eu não podia esperar um comportamento educado de quem, no
interior, não tinha educação. Percebi que a indelicadeza do rapaz decorria do
fato de que provavelmente o seu interior não devia ter valores de respeito ao
próximo.
Obs.: a referência à aparência da dupla
foi apenas para tentar contextualizar o caso. Ser educado e respeitar o próximo
independem das preferências pessoais de cada um. Infelizmente já vi atos de
indelicadeza de pessoas com diferentes indumentos. O problema não está nas
vestimentas, e sim no interior. É que, para ser educado com os demais, as
pessoas precisam internalizar os bons valores de convivência pessoal, porque,
como ensinavam os velhos romanos, ninguém pode dar aquilo que não tem (nemo plus iuris ad alium transferre potest
quam ipse habet).
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