Carlos E. Elias de Oliveira
(Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB –, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições.
Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.
Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro
E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br)
Data: 16 de março de 2020
EMENTA
1. O texto defende a possibilidade de quebra antecipada não culposa de contratos por conta do ambiente excepcional de transtorno causado pela pandemia do coronavírus. Advoga, porém, que se deve preferir a revisão contratual, se tal for viável sem grandes prejuízos às partes, tudo em nome do princípio da conservação do negócio jurídico. Excepciona hipóteses de contratos com cláusula contratual bem específica em contrário ou de contratos aleatórios que inclua as contingências próprias dessa epidemia dentro da sua zona de risco.
2. Para tanto, o texto trata das exceções de pré-vencimento (exceção de inseguridade e quebra antecipada do contrato), das regras legais e voluntárias de interpretação e de integração (à luz das alterações feitas pela Lei da Liberdade Econômica) e do teste de vontade presumível. Aponta, ainda, como vias alternativas, a teoria da imprevisão e a teoria da perda da base do negócio jurídico.
1. Introdução
Este pequeno artigo se destina a responder a esta pergunta: são lícitos ou não o rompimento antecipado de contratos ou a alteração das suas condições (revisão contratual) em razão dos transtornos causados no Brasil pela pandemia do coronavírus?
Nessa questão, remete-se não a apenas a contratos feitos com consumidores (como contratos de viagens), mas também a contratos não regidos pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC).
2. Contexto fático de transtornos causados pelo coronavírus
Março de 2020.
Os Estados Unidos fecharam as fronteiras para voos procedentes da Europa
.
A Itália relembra, “na própria pele”, uma das maiores tragédias de sua história, ocorrida no ano 79 d.C.: a erupção do vulcão Vesúvio, que dizimou a cidade de Pompeia. A cena é desoladora: excessos de corpos para ser enterrados
, superlotação de hospitais
, corpos já sem a alma abandonados em uma casa com a esperança de, um dia, ser honrado na famosa cerimônia do último adeus
.
Os cidadãos de vários países devoram as gôndolas dos supermercados para fazer estocagem de alimentos, como que a se preparar para o Apocalipse.
Inúmeros outros países impõem medidas de controle de entrada e saída de pessoas, de confinamento obrigatório (“quarentena”) e de suspensão de atividades que conglomeram pessoas.
O coronavírus, cuja estreia aterrorizadora ocorreu na cidade chinesa de Wuhan, está cavalgando nas asas do vento para perturbar a tranquilidade de todas nações do Planeta.
Apesar de se tratar de um antígeno com pouco índice de mortalidade (alguns debocham chamando-o de uma simples gripe) e com maior ameaça a idosos, a velocidade de contágio do coronavírus é incrível, criando uma demanda por assistência hospitalar além da capacidade dos governos. Grande parte das mortes se deve à falta de infraestrutura para satisfazer a abrupta demanda.
No Brasil, o cenário não é tão diferente.
Em 16 de março de 2020, já há a confirmação de 200 contaminações
.
No Estado de Rio de Janeiro, estima-se que, se as pessoas não permanecerem em casa, haverá cerca de 24 mil casos de contaminação em apenas um mês
.
Em vários Estados brasileiros, aulas foram suspensas, academias foram proibidas de funcionar, eventos foram cancelados etc
.
Os impactos econômicos são inegáveis. A Bolsa de Valores passou por um verdadeiro banho de sangue, com o preço de várias ações despencando em queda livre. Restaurantes, shoppings e comércios estão esvaziados. A população se recolhe à sua casa e evita as ruas.
3. Quebra antecipada de contrato sem culpa e as regras de interpretação e integração contratual
3.1. Delimitação do problema
Diante do cenário de tragédia desenhado pelo coronavírus, inúmeros contratos perderam totalmente a utilidade para, ao menos, uma das partes.
Vários brasileiros, atendendo às recomendações estatais, preferem não sair de casa e inúmeros eventos são cancelados, o que, por exemplo, faz perder totalmente a utilidade de contratos que tenham sido firmados para viagens.
Com o brutal esfriamento da economia e do comércio, tornam-se absolutamente desinteressantes o início ou a expansão de vários tipos de novas atividades empresariais ou de novos investimentos, o que esvazia a utilidade de eventuais contratos de parceria.
Nesse ambiente, vamos à pergunta central deste pequeno artigo: a parte que perdeu a interesse no objeto do contrato por conta do ambiente tempestuoso causado pelo coronavírus pode ou não pedir a resolução ou a revisão do contrato?
A resposta, ao nosso aviso, é positiva, salvo se houver cláusula contratual bem específica em contrário ou se se tratar de um contrato aleatório que tenha os percalços de uma pandemia como abrangido pela álea.
Por conta dos limites deste artigo, seremos o mais breve possível na exposição dos conceitos teóricos pertinentes.
3.2. Regras de interpretação e integração contratual
Todos os contratos, por serem obras humanas, são vulneráveis a ter lacunas. É humanamente impossível
ou, no mínimo, é totalmente impraticável prever, em cláusulas contratuais, todas as infinitas variações do casuísmo futuro. Se tal fosse possível, os contratos se instrumentalizariam em infindáveis calhamaços de folhas.
Por isso, o nosso ordenamento disponibiliza meios de interpretação e de integração de contratos, de modo a guiar o jurista na definição do alcance das cláusulas contratuais (interpretação) e no preenchimento de lacunas (integração).
As
regras legais de interpretação são as que decorrem de lei e só podem ser utilizadas quando não houver regra voluntária de interpretação contratual em contrário. Em suma, elas estão nos incisos do § 1º do art. 113 do CC e no art. 112. Devem ser aplicadas cumulativamente e podem ser assim listadas
[9]:
a) Regra do contra proferentem (art. 113, § 1º, IV): na dúvida, prevalece a interpretação favorável a quem não redigiu a cláusula contratual, ou seja, prevalece a interpretação contrária a quem a redigiu, ou seja, contrária a quem a proferiu (daí o nome doutrinário “regra do contra proferentem”).
b) Regra da vontade presumível (art. 113, § 1º, V): na dúvida, deve-se adotar a interpretação compatível com a vontade presumível das partes, levando em conta a racionalidade econômica, a coerência lógica com as demais cláusulas do negócio e o contexto da época (“informações disponíveis no momento” da celebração do contrato). Essa regra está conectada com o inciso II do art. 421-A do CC, que prevê o respeito à alocação de riscos definida pelas partes de um contrato.
c) Regra da confirmação posterior (art. 113, § 1º, I): a conduta das partes posteriormente ao contrato deve ser levada em conta como compatível com a interpretação adequada do negócio.
d) Regra da boa-fé e dos costumes (art. 113, § 1º, II e III): deve-se preferir a interpretação mais condizente com uma postura de boa-fé das partes e com os costumes relativos ao tipo de negócio.
e) Regra da primazia da intenção (art. 112): deve-se priorizar a intenção das partes em detrimento do sentido literal das palavras no momento da interpretação de um negócio jurídico.
As regras voluntárias de interpretação são as pactuadas pelas partes e, em princípio, devem prevalecer sobre as regras legais de interpretação por força dos arts. 113, § 2º, e 421-A, § 1º, CC. Por exemplo, poderiam as partes pactuar que, no caso de dúvida interpretativa, prevalecerá aquela mais lucrativa economicamente para uma das partes. Poderiam, até mesmo, num exemplo cerebrino, pactuar que, havendo dúvidas interpretativas, as partes decidirão com base na sorte (como por meio do jogo da “cara ou coroa”) a interpretação a prevalecer. Podem também estabelecer que deve prevalecer o sentido literal das palavras em detrimento da busca pela intenção das partes, tudo de modo a afastar a regra legal interpretativa da primazia da intenção prevista no art. 112 do CC.
Por outro lado, quando há lacuna no contrato, devemos nos valer de regras de integração, as quais podem ser divididas em duas espécies: as legais e as voluntárias.
As regras legais são as que decorrem de lei, são aplicadas apenas quando não houver critérios voluntários em sentido diverso e podem ser resumidas em duas hipóteses: (1) a aplicação das normas dispositivas ou cogentes
[10]; ou, na sua falta, (2) a aplicação, por analogia e com adaptações, tanto dos meios de integração legal previstos no art. 4º da LINDB quanto das regras interpretativa da vontade presumível, da confirmação posterior e da boa-fé.
Explica-se.
Diante de uma lacuna contratual, se não houver normas dispositivas ou cogentes que a preencham, o caso é de aplicar, por analogia e com as devidas adaptações (mutatis mutandi), tanto os critérios de integração previstos para lacunas na lei (art. 4º, LINDB) quanto as supracitadas regras legais de interpretação contratual.
De um lado, os critérios de integração previstos para lacunas legais são a analogia, o costume e os princípios gerais de direito. Entretanto, na condição de método de integração contratual, esses critérios teriam de sofrer adaptações.
A analogia deve ser entendida como: (1) a utilização de uma ou mais cláusulas similares do mesmo contrato; ou, (2) no caso de inexistirem cláusulas contratuais análogas, a utilização de uma ou mais normas dispositivas ou cogentes similares.
O costume deve ser tomado como a aplicação da experiência prática habitual envolvendo a situação omissa no contrato. Deve-se observar qual é o costume na definição das regras em contratos similares na mesma região. Devem-se prestigiar contratos similares firmados entre as mesmas partes, se houver.
Os princípios gerais de direito devem ser considerados como a incidência das noções de justiça colhidas da história do Direito para preencher o vazio contratual
.
Não há hierarquia absoluta entre esses três métodos integrativos. A hierarquia é relativa: embora preferencialmente deva-se seguir a ordem (analogia, costumes e princípios gerais de direito), ela pode ser flexibilizada no caso concreto em nome da vontade presumível das partes, da confirmação posterior, da boa-fé e a primazia da intenção das partes.
E há motivos para tanto. É que, no manuseio de um contrato, deve-se prestigiar a vontade, ainda que presumível, das partes, de maneira que, havendo omissão na redação contratual, deve-se buscar preferencialmente a solução em outras cláusulas contratuais similares (analogia). Em não havendo nada semelhante no texto contratual, deve-se recorrer aos fatos (costumes) ou, à falta destes, aos princípios gerais de direito. Essa ordem preferencial, porém, pode ser flexibilizada se tal for necessário para alinhar-se à vontade presumível das partes (racionalidade econômica, coerência lógica com cláusulas contratuais e contexto da época do contrato), ao comportamento adotado pelas partes posteriormente ao contrato, à boa-fé ou à primazia da intenção das partes.
As regras voluntárias de integração contratual são as decorrentes de pacto expresso das partes e devem ser aplicadas prioritariamente, afastando regras legais de integração em sentido diverso. De fato, nada impede que as próprias partes estabeleçam como será feito esse suprimento de lacunas do texto contratual.
Isso decorre da autonomia da vontade e, por isso, nem precisaria de autorização legal expressa. Todavia, ainda que fosse desnecessário, por questões didáticas, o legislador decidiu deixar clara essa possibilidade por meio da Lei da Liberdade Econômica, que acresceu ao Código Civil a expressa permissão para as partes estabelecerem as suas próprias regras de integração e de preenchimento de lacunas dos negócios jurídicos (art. 113, § 2º, CC).
A título de exemplo de regras voluntárias, podemos citar uma cláusula por meio da qual as partes estabelecem que, em havendo lacuna no contrato, deverá ser: (1) aplicada cláusula similar prevista em outros contratos anteriores já firmados entre as mesmas partes ou entre partes concorrentes; (2) adotada uma solução que não implique despesas adicionais ou desfalques financeiros a apenas uma das partes; (3) observado o costume no mercado envolvendo negócios semelhantes; (4) consultada uma determinada pessoa para indicar a regra que colmatará o contrato.
3.3. Exceções de pré-vencimento: a quebra antecipada do contrato e a exceção de inseguridade
No período compreendido entre a data do nascimento do contrato e o vencimento da prestação, não há um “vazio prestacional” (como se o devedor não tivesse nenhuma prestação a cumprir antes do vencimento), ao contrário do que se pensava antigamente com base em uma concepção tradicional e estática das obrigações.
Com a moderna concepção de obrigação como processo – visão mais dinâmica e finalística da obrigação –, tanto o devedor quanto o credor têm de, desde o nascimento do contrato, praticar vários atos necessários a garantir, ao final, o cumprimento adequado da prestação, tudo à luz da boa-fé objetiva. Entre esses vários atos, estão todos aqueles decorrentes dos deveres anexos.
Se, durante a relação contratual, o devedor adotar condutas que possam ameaçar o êxito futuro do cumprimento da obrigação, poderá o credor adotar medidas prévias ao vencimento da obrigação
[12], mais especificamente estas duas: a exceção de inseguridade (art. 477 do Código Civil – CC) ou a quebra antecipada do contrato (doutrina e aplicação analógica dos arts. 395, parágrafo único, 475 e 477 do CC).
Chamamos essas duas hipóteses de “exceções pré-vencimento”, pois são espécies de defesas (= exceções) utilizadas precocemente, antes do vencimento da obrigação.
Trataremos aqui, com brevidade, apenas da quebra antecipada do contrato.
É preciso ter cuidado com a nomenclatura. Apesar de a maior parte da doutrina não fazer a distinção, consideramos haver uma categoria geral chamada “quebra antecipada do contrato lato sensu”, da qual estas são espécies:
(1) quebra antecipada stricto sensu, também chamada de “quebra antecipada culposa do contrato”, “inadimplemento antecipado” ou “inadimplemento antes do termo”: é uma espécie de inadimplemento por decorrer de culpa do devedor. É a quebra antecipada culposa.
(2) Quebra antecipada não culposa do contrato: é uma espécie de resolução do contrato por caso fortuito.
É que a quebra antecipada pode decorrer de um fato superveniente causado por culpa da parte ou não.
Se decorrer de culpa, aí é adequado chamar essa quebra antecipada de “inadimplemento antecipado” ou de “inadimplemento antes do termo”.
Se, porém, não houver culpa da parte, não há falar em “inadimplemento antecipado” ou de “inadimplemento antes do termo”, pois aí não há inadimplemento! A ruptura precoce do contrato aí deve ser chamada apenas de “quebra antecipada do contrato lato sensu”.
Reconhecemos que grande parte da doutrina não faz a distinção acima e prefere utilizar a expressão quebra antecipada do contrato apenas para as hipóteses de haver culpa da parte, ao passo que a resolução prematura do contrato por fato superveniente fortuito é tratada como um fenômeno em apartado.
O pressuposto da quebra antecipada do contrato é o de que, antes do vencimento, por um fato superveniente, o objeto do contrato, na sua exata dimensão, tenha-se tornado impossível ou inútil. Quando se afirma “na sua exata dimensão”, está-se referir também ao cumprimento dos deveres anexos, como o de proteção, o de segurança e o de conforto.
3.4. O teste da vontade presumível
A quebra antecipada do contrato pode decorrer da violação de deveres anexos, mas é preciso analisar o caso concreto para verificar a razoabilidade dessa medida. Esse juízo abre um espaço não cartesiano para o intérprete. O jurista terá de valer-se de um juízo de razoabilidade que avalie a legítima expectativa do indivíduo médio. E, para tanto, sugerimos o que designamos de teste da vontade presumível.
Por esse teste, o jurista deverá responder a esta pergunta:
- à luz do contexto da celebração do contrato, se as partes tivessem, de antemão, previsto um problema que surgiria por uma futura conduta de uma das partes, elas teriam, no próprio instrumento, autorizado a ruptura do contrato?
Se a resposta for sim, é cabível a quebra antecipada do contrato. Se a resposta for negativa, não há nenhum dever anexo violado.
A resposta deverá ser feita à luz da regra da vontade presumível, que é extraída do contexto do negócio e da racionalidade econômica, conforme art. 113, § 1º, V, do CC.
A título ilustrativo, se um pai matricula um filho menor em uma escola que, posteriormente, vem a ser envolvida em graves escândalos de assédios sexuais praticados por professores contra alunos dentro do estabelecimento, é cabível a quebra antecipada do contrato. O teste da vontade presumível chancela isso, pois a resposta certamente seria positiva a esta indagação: “o pai, se tivesse previsto esse problema futuro, teria colocado, no contrato, uma cláusula permitindo a resolução contratual no caso de envolvimento da escola em um escândalo como esse?”
O teste da vontade presumível é uma ferramenta que auxilia o jurista a decidir se é ou não cabível a quebra antecipada do contrato.
Aliás, esse teste pode ser útil para o preenchimento de outras lacunas contratuais. Com efeito, por conta da racionalidade limitada imposta a todas as obras humanas, é inviável que as partes, de antemão, consigam disciplinar, no instrumento contratual, as infinitas variações do casuísmo futuro, de maneira que todo contrato tem lacunas (ainda que pequenas) e precisa de meios de integração. Além do mais, se fosse viável o exercício perfeito de uma futurologia, os instrumentos contratuais seriam volumosíssimos “livros”, os quais, de tão grandes, seriam insondáveis na prática, o que seria um despropósito. Por isso, em todo e em qualquer contrato, há necessidade de preencher suas lacunas por meio de meios de integração. O teste da vontade presumível é uma ferramenta útil para preencher essas lacunas, inclusive as relativas à admissibilidade da quebra antecipada do contrato.
3.5. da aplicação ao caso concreto: cabimento da quebra antecipada do contrato por impossibilidade superveniente do objeto
O aprofundamento dos conceitos teóricos supracitados ficará para outra oportunidade em razão dos limites deste artigo. O que foi averbado até agora basta.
Os transtornos causados pelo coronavírus inegavelmente esvaziou a utilidade do objeto de vários contratos e tornou impossível o cumprimento dele na sua exata dimensão. Ainda que, em alguns casos, haja possibilidade material de cumprimento da prestação principal, é certo que, em muitas situações, o cumprimento de deveres anexos não é mais viável.
Por exemplo, no caso de um contrato de turismo para o consumidor passar o mês de março na cidade maravilhosa do Rio de Janeiro, os deveres anexos de proteção, de segurança e de conforto (que implicitamente estão nesses contratos) não podem ser mais cumpridos: a agência de turismo não tem como proteger o consumidor do risco de contaminação com o coronavírus nem do desconforto causado pela sensação de pânico causado pela sua exposição a esse antígeno.
Outro exemplo: se alguém tinha se comprometido a investir milhões de reais no mês de março para começar um restaurante, é inegável que a outra parte (o “sócio indústria”) não terá condições de cumprir o dever anexo de garantir relativa segurança ao investidor, pois houve colossal esfriamento do comércio com as medidas de isolamento das pessoas por conta do coronavírus.
Há inúmeros contratos que perderam sua utilidade ou cujo objeto, na sua exata dimensão (considerando os deveres anexos), se tornou impossível antes do vencimento por um fato superveniente e fortuito: a pandemia do coronavírus. Isso, pois, autoriza a quebra antecipada não culposa do contrato, salvo se houvesse cláusula contratual bem específica em sentido contrário ou se se tratasse de contrato aleatório que incluísse essa epidemia dentro da sua zona de risco.
Em todos esses contratos, pode-se considerar, como cláusula implícita, a possibilidade de ruptura precoce do contrato diante da excepcionalidade causada pelo coronavírus. A regra da vontade presumível, que serve não apenas como meio de interpretação, mas também de integração contratual, credencia essa ilação.
Ademais, em nome do princípio da conservação do negócio jurídico, se, no caso concreto, por um juízo de razoabilidade, for verificado que o contrato poderia ser mantido com alterações de suas condições sem grande prejuízo às partes, essa alternativa de “revisão contratual” deve ser escolhida no lugar da quebra antecipada do contrato. Nos exemplos acima, se se entender que o adiamento, para depois da crise do coronavírus, da viagem para o Rio de Janeiro ou da data do aporte do investimento for considerada uma medida razoável para conciliar os interesses de ambas as partes, deve ser mantido o contrato de turismo ou de investimento com essa alteração das condições contratuais.
Por fim, o que chamamos de “teste da vontade presumível” também chancelaria essa conclusão: se as partes tivessem, de antemão, previsto a pandemia, elas certamente teriam autorizado a ruptura ou a revisão do contrato ou, no mínimo, teriam estipulado outras condições contratuais (o preço, por exemplo, provavelmente seria outro diante da assunção do risco da pandemia por qualquer das partes).
3.6. Um outro caminho
Tudo quanto foi exposto poderia chegar a um resultado similar se percorrêssemos o caminho da teoria da imprevisão
(art. 478, CC) e da quebra da base do contrato
, sustentando que, com os transtornos causados pelo coronavírus, vários contratos se tornaram excessivamente onerosos para uma das partes ou perderam a sua base de justificação. Deixamos de detalhar essa via alternativa por entendermos suficiente a que foi enfocada neste caso.
4. Conclusão
O ambiente de transtorno causado pelo coronavírus autoriza a quebra antecipada não culposa de contratos cuja utilidade tenha se esvaziado ou cujo cumprimento, na sua exata dimensão (com inclusão dos deveres anexo de proteção, de segurança e de conforto), tenha se tornado impossível. A exceção corre à conta de haver cláusula bem específica em sentido contrário ou de se tratar de contrato aleatório que, na sua zona de risco, inclua os transtornos causados pela indesejada pandemia.
Se, porém, por um juízo de razoabilidade, for viável manter o contrato com alterações negociais (revisão contratual) sem grandes prejuízos às partes, deve-se preferir essa via em razão do princípio da conservação do negócio jurídico.
O teste da vontade presumível é recomendável para avaliar os casos concretos.