quinta-feira, 19 de março de 2020

A Medida Provisória nº 925/2020: aplicabilidade apenas para contratos posteriores e sua possível inconstitucionalidade

A Medida Provisória nº 925/2020: aplicabilidade apenas para contratos posteriores e sua possível inconstitucionalidade


Carlos E. Elias de Oliveira

(Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB –, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições.
Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.
Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro
E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br)

Data: 19 de março de 2020


Acabou de sair a Medida Provisória (MP) nº 925, de 18 de março de 2020, estabelecendo que as companhias áreas têm 12 meses para devolver dinheiro pago pelo consumidor no caso de cancelamento de contratos feitos até dezembro deste ano. Veja o seu art. 3º:

Art. 3º O prazo para o reembolso do valor relativo à compra de passagens aéreas será de doze meses, observadas as regras do serviço contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulamentação vigente.
§ 1º Os consumidores ficarão isentos das penalidades contratuais, por meio da aceitação de crédito para utilização no prazo de doze meses, contado da data do voo contratado.
§ 2º O disposto neste artigo aplica-se aos contratos de transporte aéreo firmados até 31 de dezembro de 2020.

Indaga-se: esse dispositivo se aplica a contratos antigos ou só a contratos posteriores?
A resposta é clara. Essa MP não pode atingir contratos celebrados anteriormente a ela, nem mesmo se a desistência motivada do consumidor ocorrer após esse diploma urgente, tudo por força da vedação, diante de ato jurídico perfeito, à retroatividade (sequer mínima) de norma que não seja constitucional originária. O STJ já decidiu de forma similar para o caso da famosa “Lei do Distrato” (STJ, Questão de Ordem no REsp 1.498.484/DF, 2ª Seção, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 25/06/2019).
Portanto, para contratos anteriores à MP, a devolução do dinheiro antecipado pelo consumidor tem de ser imediata, sob pena de a companhia se sujeitar aos encargos moratórios. Na prática, como a taxa Selic está atualmente baixa e é o índice legal de juros moratórios (art. 406 do CC) à luz da jurisprudência do STJ, a companhia que retardar a devolução do dinheiro ao consumidor terá de pagar esse “pequeno” encargo durante o seu período de atraso.
O único “jeitinho de driblar” isso seria valer-se da técnica da ponderação de princípios constitucionais para fazer o princípio da segurança jurídica ceder diante de outros princípios constitucionais (como o da razoabilidade), caminho que nos soa censurável por criar uma brecha para burlar qualquer regra jurídica e chancelar voluntarismos. Trata-se, pois, de caminho juridicamente indevido e tendencioso.
Além do mais, a MP, apesar da sua elevada preocupação social por conta da pandemia do coronavírus, titubeia diante do princípio constitucional da isonomia e da razoabilidade. Basta uma pergunta retórica para identificar essa possível inconstitucionalidade: por que a MP não previu esse diferimento em 12 meses para outras várias dívidas existentes no Brasil, inclusive para dívidas que consumidores têm perante instituições financeiras ou até perante companhias aéreas? De fato, há consumidores que parcelaram a compra da passagem aérea e que paradoxalmente terão de continuar pagando as parcelas sem qualquer direito de prorrogar em 12 meses as parcelas. Ora, não só as companhias aéreas mas também inúmeros consumidores estão sem recursos para honrar seus compromissos financeiros em razão da brutal crise financeira causada pela pandemia. Por que só as companhias aéreas terão o privilégio legal de diferir suas obrigações em 12 meses?
A situação causada pela pandemia do coronavírus é realmente calamitosa. A própria revisão ou a quebra antecipada de contratos são plenamente admissíveis, conforme já tivermos a oportunidade de expor em outro artigo[1]. Muitas empresas estão amargando pesados prejuízos financeiros.
Nesse momento de pandemia, todos, inclusive o legislador, têm de ser como aquele habilidoso piloto que consegue atravessar uma perigosa área de turbulência sem descumprir as regras da aviação civil. Não se trata de tarefa fácil, mas é nosso dever executá-la sem desrespeitar os parâmetros da Constituição Federal.



[1] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contratos e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/321885/o-coronavirus-a-quebra-antecipada-nao-culposa-de-contratos-e-a-revisao-contratual-o-teste-da-vontade-presumivel. Publicado em 17 de março de 2019.

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