terça-feira, 7 de julho de 2015

Primeiras impressões das mudanças feitas no Código Civil pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015)

  Hoje, 7/7/2015, foi publicada a Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que entrará em vigor a daqui 180 dias.
  O diploma modificou diversos dispositivos no Código Civil.
  Li, fiz anotações e gostaria de compartilhar algumas impressões, mas, desde logo, já me penitencio por eventual falha interpretativa que, naturalmente, pode surgir de uma leitura inicial.
   Apresso-me em compartilhar as impressões para fomentar o debate e aprender, e não para ensinar, razão por que rogo que todos fiquem bem à vontade para expressar opiniões contrárias. Quero aprender também o que a nova lei quis estabelecer.
  A nova lei busca, além de garantir direitos, eliminar referências terminológicas na legislação que estigmatizem as pessoas com deficiência. Mas, nesse legítimo e elogioso, a lei acabou por cometer alguns (e gravíssimos) pecados contra a proteção dessas pessoas.
  O novel diploma alterou o Código Civil em diversos pontos, dos quais destacamos estes:
  a) Não há mais incapacidade por deficiência mental (arts. 3º, 4º e 1.767, CC). O único caso de incapacidade absoluta é o de menores de 16 anos. A incapacidade relativa doravante só abrange 3 hipóteses: (1) menoridade entre 16 e 18 anos, (2) ébrios habituais, (3) viciados em tóxicos e (4) pródigos.
 b) Pessoa com deficiência mental pode ser testemunha (art. 226, CC).
 c) Não há mais invalidade do casamento por deficiência mental nem por ignorância de doença mental grave que torne a vida matrimonial insuportável (arts. 1.548, I, e 1.557, CC).
 d) Pessoa com deficiência "mental ou intelectual" pode casar expressando sua vontade diretamente ou por meio de responsável ou curador (art. 1550, § 2º, CC).
 e) Pessoas com deficiência física ou mental não estão mais sujeitas à curatela, mas apenas as pessoas inclusas no novo catálogo de incapazes (art. 1.767, CC). Todavia, apesar disso, o art. 1.769 do CC estabelece que o Ministério Público pode promover processos de definição de curatela em caso de deficiência mental ou intelectual. Esse texto legal gera dúvidas sobre o tema, conforme se exporá abaixo.
 f)  A própria pessoa com deficiência pode pedir direta e judicialmente a interdição (art. 1.768, IV, CC).
 g) Restringiu-se a legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo de definição da curatela a casos envolvendo pessoas com deficiência "mental ou intelectual" (art. 1.769, CC).
 h) Enfatizou-se a obrigatoriedade de o juiz servir-se de apoio de equipe multidisciplinar ao definir os limites da interdição (art. 1.771, CC).
i) A curatela somente envolverá limites patrimoniais ao interditado (art. 1.772, CC).
j) Admite-se a curatela compartilhada a mais de uma pessoa (art. 1.775-A, CC).
l) Prestigia-se o convívio familiar e comunitário da pessoa com deficiência e evita-se o seu recolhimento em estabelecimentos de internação (art. 1.777, CC).
m) Institui a Tomada de Decisão Apoiada como instrumento de que se pode servir a pessoa com deficiência (art. 1.783-A, CC).



   As mudanças, sem dúvidas, merecem aplausos em alguns aspectos, mas, numa primeira leitura, tenho que elas se maculam com alguns equívocos. Externo minhas críticas (que poderão ser modificadas em futuras leituras minhas):
 

1) A expressão "interdição" subsiste, com registro no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais (vide art. 1.771 e 1.773 do CC e a Lei nº 6.015/73). Ela se restringe aos casos das pessoas inclusas no novo rol de incapazes.

2) Pessoas com deficiência mental ou física NÃO estão sujeitas à interdição. Mas a nova legislação turbou a harmonia sistemática do Código Civil e gerou uma dúvida: elas podem ou não ter curadores? Por um lado, o novo art. 1.767 do CC e a revogação do art. 1.780 do CC afastam as pessoas com deficiência mental ou física das sujeitas à curatela. Por outro lado, paradoxalmente, o recente art. 1.769, I, do CC permite que o Ministério Público promova processo de definição de curatela "em caso de deficiência mental ou intelectual". E, ainda em contradição, o novo § 2º do art. 1.550 estabelece que a pessoa com deficiência mental ou intelectual pode expressar sua vontade de casar diretamente ou por meio de "responsável ou curador".
      Diante disso, a meu sentir, a melhor interpretação é que não se admite mais processo de definição de curatela para pessoas com deficiência física ou mental, salvo se estas se encaixarem em um dos casos de incapacidade (ex.: pessoa com deficiência que seja pródiga), caso em que a curatela decorrerá da incapacidade, e não da deficiência. Seriam nessas hipóteses de incapacidade de pessoa com deficiência que o Ministério Público teria legitimidade ativa para o processo de definição da curatela e que o nubente iria manifestar sua vontade de casar por meio de curador.

3) Pessoas com deficiência física ou mental, se quiserem (somente elas possuem legitimidade ativa para pedir judicialmente), podem promover processo de Tomada de Decisão Apoiada, por meio do qual elas elegerão, pelo menos, duas pessoas de confiança para prestar-lhe apoio na prática de atos da vida civil. Em princípio, não haverá qualquer lançamento da nomeação desses apoiadores nos registros públicos, por falta de previsão legal desse ato no cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais.

4) A nova lei alude a pessoas com deficiência mental e intelectual. Com fins de depuração terminológica para afastar a carga preconceituosa contida no adjetivo "mental", tem-se empregado a expressão "deficiência intelectual" para situações antes abrangidas por "deficiência mental". Confiram-se a propósito esta matéria: http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/entenda-a-diferenca-entre-deficiencia-intelectual-e-doenca-mental/; e este artigo: http://www.todosnos.unicamp.br:8080/lab/links-uteis/acessibilidade-e-inclusao/textos/deficiencia-mental-ou-deficiencia-intelectual/.

5) Impedir a anulação do casamento pelo fato de um dos cônjuges somente descobrir deficiência mental grave do outro consorte (a ponto de tornar insuportável a vida comum) após o casamento foi uma opção legislativa inadequada, a nosso sentir. Em primeiro lugar, lei alguma poderá manter o casal unido; o cônjuge se desvencilhará do vínculo conjugal pelo divórcio. Em segundo lugar, a nova lei deixará marcado, nos registros públicos, os rastros do casamento e imporá um novo estado civil a ambos, o de divorciado (o que pode gerar constrangimentos a determinadas pessoas).

6) Minha principal e mais grave crítica (e creio que o legislador não queria o que repugno aqui) é que, em princípio, atos jurídicos praticados por pessoas com deficiência mental SÃO plenamente válidos. Eles não precisam mais de representantes ou assistentes, pois são capazes. Afinal de contas, a invalidade dos negócios jurídicos é mecanismo de proteção dos incapazes (arts. 166, I, e 171, I, do CC), entre os quais não se incluem as pessoas com deficiência mental. Além do mais, se a pessoa com deficiência tiver apoiadores nomeados com base no art. 1.783-A do CC, a falta de prestação de informações por parte desses apoiadores não invalida o ato jurídico, pois, além de não haver previsão legal de que esses apoiadores devem participar do ato jurídico como representantes ou assistentes, a situação jurídica de apoiador não é oponível contra terceiros por falta de previsão legal e de publicidade nos registros públicos.
  "Resumindo a ópera", pessoas com gravíssima deficiência mental podem, sozinhas, praticar atos jurídicos (assinar contratos, por exemplo), sem poder invocar a invalidade do ato. Não importa se o ato jurídico praticado pela pessoa com deficiência mental foi anterior ou posterior a qualquer processo de Tomada de Decisão Apoiada (lembre-se de que não caberia processo de interdição ou de curatela, segundo o texto legal)! O ato jurídico é sempre válido.
  É certo que o legislador não quis esse absurdo, mas foi isso que ele escreveu no Código Civil. Se a lei não for modificada a tempo, caberá à jurisprudência tentar consertar os rumos tortos tomados pelo novo diploma. Talvez, uma forma de contornar isso reside na investigação da boa-fé: se quem contratar com pessoa com deficiência estiver de má-fé (sabe da situação de desvario), o negócio será nulo por ofensa à boa-fé, cuja observância seria, para esse efeito de nulidade absoluta, considerada como uma lei imperativa (art. 166, VII, do CC).
  Outra forma - um "jeitinho" hermenêutico - é imprimir interpretação ao novo inciso III do art. 4º do CC, que arrola, como relativamente incapaz, "aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade". Em respeito ao histórico desse enunciado normativo, que, antes do novo diploma, se destinava a classificar como absolutamente incapazes pessoas que, embora não tivessem deficiência intelectiva, estavam fisicamente impossibilitados de exprimir a vontade (ex.: pessoas em coma), a interpretação adequada do inciso III do art. 4º do CC não poderia abranger pessoas com deficiência mental ou intelectiva. Todavia, pode-se distorcer esse preceito e refugar o seu histórico para considerar que quem não pode exprimir adequadamente a vontade é incapaz, seja de modo temporário, seja permanentemente. Mas essa interpretação, além de ser desconectada com o histórico do enunciado normativo, corrompe a nova legislação, que rejeitou o rótulo de incapaz para pessoas com deficiência.



Observação final: o legislador, sem enxergar as consequências graves acima, realmente quis excluir as pessoas com deficiência do rol de incapacidade, conforme se pode ler deste excerto do parecer proferido no âmbito do Senado Federal para o Projeto de Lei do Senado nº 6, de 2013, que gerou a Lei 13.146/2015:


"Entendemos, na linha da Convenção, que as pessoas com deficiência não podem sofrer limitações na sua capacidade civil. Assim, impõe-se a revogação de toda a legislação que dispõe em sentido contrário. Os institutos da tutela e da curatela têm sido empregados de modo retrógrado e draconiano, limitando exageradamente a capacidade das pessoas que deveriam ser suas beneficiárias. Com as alterações promovidas pelo SCD, apenas os menores de dezesseis anos seriam absolutamente incapazes, prevalecendo à capacidade relativa para os ébrios e os toxicômanos, além daqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. A curatela passa a considerar apenas os critérios de discernimento e capacidade de exprimir a vontade, deixando de considerar a existência de deficiência ou enfermidade. Às pessoas com deficiência, especificamente, seriam aplicáveis as regras previstas nos arts. 84 a 87 do SCD, e na nova redação dada ao art. 1.769 do Código Civil. " (http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/167215.pdf)