sexta-feira, 10 de abril de 2015

Anuência do credor para alienação de bens objeto de garantia?


(Des?)Necessidade de anuência do credor para transferência de imóveis ou móveis objeto de garantia real?

Carlos Eduardo Elias de Oliveira


1. QUADRO ATUAL SOBRE A ANUÊNCIA DO CREDOR NOS CASOS DE TRANSMISSÃO DE BENS OBJETO DE GARANTIA REAL

1)      No caso de bens móveis, não há necessidade de consentimento do credor para a alienação da propriedade onerada ou para a cessão do direito real de aquisição do fiduciário, salvo neste caso:

a.       Cédula de Crédito Rural, Industrial, Comercial e à exportação (art. 59 do DL 167/67; art. 51 do DL 413/69; art. 5º da Lei nº 6.840/80; art. 3º da Lei 6.313/75).

2)      Venda de imóvel onerado por garantia real não depende de consentimento do credor (art. 1.475 do CC), salvo nestes casos:

a.       Imóvel financiado no âmbito do SFH (art. 1º da Lei 8.004/90);

b.      Cédula de Crédito Rural, Industrial, Comercial e à exportação (art. 59 do DL 167/67; art. 51 do DL 413/69; art. 5º da Lei nº 6.840/80; art. 3º da Lei 6.313/75).

3)      Cédula de Produto Rural, Cédula de Crédito Imobiliária e Cédula de Crédito Bancária não excepcionam a regra anterior por falta de previsão legal.

4)      Cessão de direito real de aquisição do devedor fiduciante sobre imóvel DEPENDE de consentimento do credor fiduciário, conforme interpretação que prevalece acerca do art. 29 da Lei nº 9.514/97 (Art. 29. O fiduciante, com anuência expressa do fiduciário, poderá transmitir os direitos de que seja titular sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia, assumindo o adquirente as respectivas obrigações).

5) Cessão de contrato envolvendo loteamento não exige consentimento do loteador (art. 31, § 1º, da Lei 6.766/79). Há quem sustente que a dívida referente ao pagamento do preço passará a ser do cessionário, entendimento ao qual não aderimos. Preferimos entender que esse preceito apenas autoriza a cessão do crédito (direito a receber o lote com a construção), e não a assunção de dívida, que, nos termos do art. 299 do CC, reclamaria anuência do credor (o loteador ou, no caso de financiamento bancário, o banco). Transcreve-se o dispositivo retrocitado:

      Art. 31. O contrato particular pode ser transferido por simples trespasse, lançado no verso das vias em poder das partes, ou por instrumento em separado, declarando-se o número do registro do loteamento, o valor da cessão e a qualificação do cessionário, para o devido registro.
§ 1º A cessão independe da anuência do loteador mas, em relação a este, seus efeitos só se produzem depois de cientificado, por escrito, pelas partes ou quando registrada a cessão.
§ 2º - Uma vez registrada a cessão, feita sem anuência do loteador, o Oficial do Registro dar-lhe-á ciência, por escrito, dentro de 10 (dez) dias.
 


2. NOSSA RESSALVA QUANTO À INTERPRETAÇÃO VIGENTE DO ART. 29 DA LEI Nº 9.514/97 E QUANTO À NECESSIDADE DE MODIFICAÇÃO DAS DEMAIS NORMAS CITADAS ACIMA

A nosso sentir, a interpretação vigente para o art. 29 da Lei 9.514/97 não é a mais adequada.

Explica-se.

Há duas relações jurídicas entre as partes: (1) uma de natureza contratual, que sói ser um mútuo, e (2) outra de alienação fiduciária em garantia, que, com o registro no álbum imobiliário, ganha natureza real.

Sob a perspectiva desses contratos, o fiduciante possui um crédito, que é o direito real de (re)aquisição, e uma dívida garantida por um direito real (a propriedade fiduciária), que é o valor a ser pago por conta do mútuo. Não há qualquer prejuízo ao credor, se o devedor transmitir a terceiros o seu direito real de aquisição (uma cessão de crédito), pois ele continuará sendo o devedor e o imóvel seguirá vinculado ao pagamento da dívida por conta da garantia real.  Quem adquirir esse direito real de reaquisição está ciente de que, no caso de inadimplência, o imóvel responderá pela dívida.

Não há, portanto, qualquer prejuízo ao credor. Pelo contrário, haverá benefícios a ele, visto que, na prática, haverá mais uma pessoa interessada no pagamento da dívida, o terceiro adquirente, que, se pagar a dívida, sub-roga-se nos direitos do credor contra o devedor (arts. 346, III, e 1.368 do CC).

Em outras palavras, não há necessidade de o credor consentir com a cessão de crédito (transmissão do direito real de aquisição).

O que seria potencialmente nocivo ao credor é a assunção de dívida (ou cessão de débito), pois o novo devedor poderia não ter condições de solvência adequada. É por essa razão que, em regra, a assunção de dívida depende de consentimento expresso do credor, conforme art. 299 do CC.

Como se vê, o credor só precisa consentir com a assunção de dívida, e não com a cessão de crédito.

De passagem, relembre-se que a doutrina designa de “cessão de contrato” a transmissão da posição contratual de uma pessoa, quando esta é credora e devedora. A cessão de contrato implica, pois, uma cessão de crédito em concomitância com uma assunção de dívida. Para a cessão do contrato, é fundamental o consentimento do credor, apenas porque ela envolverá uma assunção de dívida (que reivindica a aquiescência creditoris).

É à luz dessas considerações que deve ser interpretado o art. 29 da Lei nº 9.514/97. Nesse dispositivo, está expresso que o adquirente assumirá “ as respectivas obrigações” com “a transmissão dos direitos de que [o fiduciante] seja titular”. O preceito, pois, cuida de uma cessão de contrato, e não apenas de uma cessão de crédito ou apenas de uma assunção de dívida. E, por isso, o dispositivo exige o consentimento expresso do credor fiduciário para essa transmissão da posição contratual.

O dispositivo, ao nosso aviso, não cuida da pura e simples cessão de crédito (transmissão do direito real de aquisição), de modo que o devedor fiduciante poderá livremente transferir seus direitos a terceiros, com a ciência de que, além de o imóvel continuar vinculado ao pagamento da dívida por conta da propriedade fiduciária (que é uma garantia real), ele seguirá obrigado pessoalmente à satisfação da dívida. O adquirente, a seu turno, somente se tornará um terceiro (e não parte) na relação contratual e, se quiser, poderá pagar a dívida e sub-rogar-se nos direitos do credor contra o devedor fiduciante.

Portanto, entendemos que o art. 29 da Lei nº 9.514/97 não exige a anuência do credor fiduciário para a mera cessão de crédito (a transmissão do direito real de aquisição), mas apenas para a cessão de contrato (cessão de crédito simultânea com a assunção de dívida).

E mais: com base no raciocínio acima, não enxergamos motivos razoáveis na subsistência da exigência de anuência do credor no caso de mera alienação da coisa objeto de garantia de financiamento no âmbito do SFH e de cédulas de crédito rural, industrial, comercial e à exportação. As respectivas normas deveriam ser alteradas, para preservar essa exigência somente para as hipóteses de cessão de contrato (por esta envolver a assunção de dívida).

Essa interpretação que propomos parece mais compatível com a função social da propriedade, por estimular a circulação de bens, evitar a manutenção de bens em situação de ócio (o devedor, por vezes, não tem interesse em usar o bem) e não prejudicar o credor (aliás, o credor será beneficiado com o acréscimo de mais um interessado no pagamento da dívida).

terça-feira, 7 de abril de 2015

O perigo da desatenção à jurisprudência dos Tribunais: a questão da cumulação de divórcio, guarda e alimentos.

   
       Hoje, uns amigos alunos queixaram-se no meio da aula de Direito Civil, afirmando que alguns juízes no DF, por decisão de emenda à inicial, estão rejeitando a cumulação de pedidos de divórcio, guarda e alimentos, sob o argumento de que o filho é parte legítima apenas para a ação de guarda.
       Trata-se, a meu sentir, de um ato inusitado que caminha na contramão dos princípios reitores do processo civil e de um desrespeito a uma tradição "milenar".
      Afronta, também, a jurisprudência do TJDFT, conforme citado ao final deste texto.
      O pior em tudo isso é que os advogados se veem em um dilema: (1) interpor recurso e aguardar "meses e meses" para comprovar o equívoco das decisões de emenda à inicial, tudo em prejuízo às partes, que não podem aguardar muito tempo para resolver problemas de direito de família, ou (2) emendar a inicial e propor a ação de guarda em apartado, poupando esses longos meses de recurso.
     Geralmente, a pressa prevalece diante da busca pela solução justa em uma questão processual.
     Fatos como esses, em que juízes assumem entendimentos pessoais em desconexão com a jurisprudência do Tribunal local, convencem-me, a cada dia mais, que a autonomia do juiz de primeiro grau deve ser vista sob uma perspectiva institucional, e não singular.
       Um processo civil mais célere e justo passa, necessariamente, pelo aumento das hipóteses de vinculação das instâncias de primeiro piso aos julgados dos Tribunais.
      Convicções estritamente individuais não podem sobrepor-se às convicções institucionais do Poder Judiciário.
      A autonomia do magistrado não é individual, e sim institucional.
      A autonomia é do Poder Judiciário, e não de um de seus membros.
      Encerro trazendo a lume julgado do TJDFT que sintetiza bem o descabimento das decisões de emenda à inicial no caso de cumulação de pedidos de divórcio, guarda e alimentos:


EMENTA - PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE CONHECIMENTO. PEDIDOS DE DIVÓRCIO E GUARDA DOS FILHOS. CUMULAÇÃO. POSSIBILIDADE. ART. 292 DO CPC.
1. É possível a cumulação (objetiva) dos pedidos de divórcio e guarda dos filhos, seja porque são compatíveis, como porque ambos inserem-se na competência do Juízo e são suscetíveis de julgamento conjunto, segundo o rito ordinário (CPC, art. 292, § 2º).
2. Jurisprudência: "Em atenção aos princípios da efetividade e da economia processual, é possível a cumulação dos pedidos de divórcio com alimentos, guarda e regulamentação de visitas (CPC 292). 2. Deu-se provimento ao agravo para determinar o prosseguimento do feito em relação a todos os pedidos formulados na inicial." (20130020064730AGI, Relator: Sérgio Rocha, 2ª Turma Cível, DJE 10/06/2013, p. 71).
3. Doutrina de Moacyr Amaral dos Santos: "É admissível a cumulação, na petição inicial, de vários pedidos, sejam eles conexos ou não, uma vez dirigidos contra o mesmo réu, ou réus. Tal é a chamada cumulação objetiva, em que a res, o petitum não é um, mas são vários" (in Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, vol. 2, 26ª edição, Ed. Saraiva, 2010).
4. Parecer do Ministério Público pelo conhecimento e provimento.
5. Agravo provido.
(TJDFT, Acórdão n.798717, 20140020066462AGI, Relator: JOÃO EGMONT, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 11/06/2014, Publicado no DJE: 14/07/2014. Pág.: 190)