domingo, 10 de junho de 2018

"Ser advogado é ser um Quixote sem quixotismos"

“Ser advogado é ser um Quixote sem quixotismos, de pés no chão, um sacerdote sem cobrança, um radical sem intransigência, um orgulhoso sem soberba, um humilde sem subserviência, um militante sem ser chato. Este há de ter coluna vertebral sabiamente rígida para só se curvar à justiça, à ternura e à solidariedade. A artrose só deverá estar presente diante da prepotência, da corrupção e das lisonjas.”

(autoria da frase: recebi essa frase em uma postagem de facebook e, ao que parece, ela é obra do talento do jurista  Marcello Lavenère, de quem tive a honra de ser aluno na minha saudosa Faculdade de Direito da UnB. Peço que me avisem se a autoria é de outrem)

sábado, 9 de junho de 2018

Comentário a precedente do TJDFT sobre gestão de negócios: caso da internação de familiar em hospital


˜Carlos Eduardo Elias de Oliveira


Poucas pessoas estudam o ato jurídico unilateral chamado "gestão de negócios", disciplinado a partir do art. 861 do Código Civil (CC). Costumo dizer que se trata do ato do intrometido ou do enxerido, pois a gestão de negócios ocorre quando alguém (o gestor) administra interesse de outrem (o dono do negócio) sem prévia autorização deste. O gestor age como representante do dono do negócio sem consentimento prévio deste. É um representante sem mandato. É um "enxerido". É o caso, por exemplo, de uma pessoa que, vendo a casa do vizinho em chamas, toma a liberdade de fazer contratos para repará-la minimamente (ex.: trocar a porta que foi incendiada) até que o vizinho retorne de uma viagem.
Nosso objetivo aqui é tratar de uma situação peculiar analisada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT): se alguém assina o contrato de internação hospitalar para propiciar um tratamento médico a um parente que está desmaiado, o hospital poderá cobrar a dívida de quem: de quem assinou ou do parente que foi internado? O TJDFT analisou essa hipótese sob a ótica da gestão de negócios e entendeu que quem assinou deverá responder pela dívida, ainda que ele pudesse ser considerado um gestor de negócio. 
As regras de gestão de negócio são para disciplinar relação jurídica entre o gestor e o dono, e relações entre o dono do negócio e os terceiros com quem o gestor, em nome do dono, celebrou contratos (art. 869, CC). Não estão abrangidos aí casos em que o gestor fez contratos em seu próprio nome, pois, nesse caso, o outro contratante só terá direitos contra o gestor, e não contra o dono do negócio. Aplicam-se aí as regras próprias de contratos, dentro das quais as partes poderiam valer-se de figuras como a do contrato com pessoa a declarar (cláusula pro amico eligendo), em que o contratante só consegue se exonerar da obrigação se vier a conseguir o consentimento do terceiro indicado como sucessor contratual (arts. 467 e 470, CC).
Assim, se alguém (gestor) interna outrem (dono do negócio) em um hospital particular (terceiro), o gestor terá de pagar as despesas hospitalares se houver celebrado o contrato em seu próprio nome, ou seja, se ele tiver sido parte. Se, todavia, o contrato houver sido firmado em nome do dono do negócio com a assinatura do gestor apenas como representante (a gestão de negócio é representação sem mandato), o terceiro só poderá cobrar a dívida do dono do negócio se se tratar de gestão útil, necessária ou proveitosa, para as quais o Código Civil estabelece textualmente o dever obrigacional do dono do negócio pelas obrigações assumidas, em nome dele (do dono), pelo gestor (arts. 869 e 870, CC).
Essa deve ser a leitura do seguinte precedente do TJDFT, que admitiu que o hospital particular cobrasse de quem assinara o contrato em seu próprio nome as despesas hospitalares havidas com um familiar dele. Se o contrato tivesse sido firmado em nome desse paciente com assinatura de quem expressamente se declarou gestor de negócio (representante do paciente sem procuração), o resultado seria diferente: o gestor não seria obrigado por essa dívida, mas apenas o paciente na hipótese em que a gestão tenha sido útil, proveitosa ou necessária. Veja a ementa do julgado:
  
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS HOSPITALARES. RESPONSABILIDADE DO FAMILIAR QUE FIRMA O CONTRATO. GESTÃO DE NEGÓCIOS. NÃO CARACTERIZAÇÃO. FATO IMPEDITIVO, MODIFICATIVO OU EXTINTIVO DO DIREITO DO AUTOR. AUSÊNCIA. RESPONSABILIDADE CONFIGURADA. SENTENÇA REFORMADA. 
1. A gestão de negócios é ato unilateral de vontade e caracteriza-se pela espontaneidade da intervenção do gestor no negócio alheio, que não deve resultar de qualquer prévio ajuste ou ordem, atuando o gestor no interesse e segundo a vontade presumida do dono do negócio, sem interesse pessoal. Nessa perspectiva, não configura hipótese de gestão de negócios, quando a pessoa, visando o pronto atendimento, conduz o ente familiar a hospital privado e, voluntariamente, firma contrato de prestação de serviços hospitalares como obrigada pelo pagamento das respectivas despesas.
2. É legítima a cobrança de despesas médicas e hospitalares realizadas por estabelecimento de saúde com supedâneo em contrato particular de prestação de serviços hospitalaresfirmado livre e conscientemente, acompanhado das notas discriminativas das despesas relativas à incontroversa prestação dos serviços.
3. Ausente causa que afaste a higidez do contrato particular de prestação de serviços hospitalares, livremente celebrado entre as partes, o ajuste deve ser cumprido, em obediência aos princípios da boa fé objetiva e do pacta sunt servanda,com o fito de compelir a contratante a arcar com as despesas hospitalares decorrentes da efetiva prestação dos serviços.
4. Apelação conhecida e provida.


(Acórdão n.1004023, 20130310174820APC, Relator: SIMONE LUCINDO 1ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 15/03/2017, Publicado no DJE: 27/03/2017. Pág.: 233/251)


             Se alguém optar por celebrar um contrato em seu próprio nome perante o hospital para o tratamento do familiar, a cláusula pro amico eligendo pode ser útil para que o contratante indique esse familiar doente como sucessor contratual, caso em que o polo contratual será sucedido, se houver o consentimento desse familiar e se este for não for sabidamente insolvente.
Em resumo, se alguém interna um familiar no hospital e assina o contrato, quem terá de pagar a conta? TJDFT disse que é quem assinou o contrato.