quarta-feira, 16 de setembro de 2015

UMA PERDA QUE NÃO FOI

  Olá, amigos.
Gostaria de compartilhar um episódio que ocorreu comigo em 25/JUL/2015.
Segue abaixo o texto que eu havia postado no facebook sobre esse episódio.
Abraços
Carlos E Elias

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             UMA PERDA QUE NÃO FOI

    Hoje , enquanto minha esposa estava no salão de beleza (ela não precisa dessas coisas - já é bela demais!), resolvi ficar com os nossos dois filhos caninos, o Bolota e o Sushi, no lado de fora de um restaurante na quadra 104 do Sudoeste.
    Amarrei a guia das coleiras dos cachorros na minha cadeira e fiquei lendo um pouco sobre "Pocock", para municiar-me com os subsídios necessários para elaborar um trabalho de uma disciplina do mestrado.
   Com a leitura, minha mente desconectou-se do mundo sensível e flutuou nas asas do pensamento jusfilosófico do Século XV na Inglaterra, procurando entender as formas jurídicas adotadas no mundo anglo-saxão.
  E, enquanto isso, na Terra, meu filho canino mais velho escreve um drama lancinante.
  Ele, o Bolota, desvencilha-se da coleira e deixa-a, vazia, presa à minha cadeira. E, na sua ingenuidade pueril, com o sorriso aberto e a língua para fora, sai, errádico, a desfilar com o seu charme pela comercial da quadra 104, deixando, em cada pilastra, um registro físico do seu "Bolota esteve aqui". Mas esses rastros não seriam inteligíveis para mim. E o Bolota ignorava os perigos que lhe rondavam.
 De repente, uma senhora, que saía de uma loja rumo ao carro, fita os olhos no Bolota e - não sei com qual intenção - pergunta a dois nobres senhores que estavam parados se aquela meiguice ambulante lhes pertenciam.
  Um dos senhores, querendo repelir a possível tentação de apropriação indébita que incitava aquela senhora, responde que sim, ao que a referida senhora seguiu (sozinha - ufa!) seu rumo ao carro.
  Imediatamente, os dois nobres senhores decidem ir em busca do desatento pai daquele errante cachorro.
 Enquanto isso, eu continuava perdido no mundo filosófico da Inglaterra do Século XV em busca de conexões com o Direito contemporâneo, com a falsa sensação de que meus filhos caninos estavam seguros ao meu lado, ao conforto da serena tarde de Brasília.
 E, ao despretensiosamente erguer meus olhos do livro para a rua principal, meu espírito abruptamente retornou de sua viagem. Vi, entre braços de um daqueles nobres senhores, o rosto peludo, faceiro e puro do Bolota.
 Pensei que se tratava de algum ousado cachorro que tentara copiar a beleza do meu primogênito canino. E, para confirmar que essa réplica não poderia superar a candura do verdadeiro Bolota, baixei meus olhos ao chão e me assustei: somente o Sushi e uma coleira vazia repousavam inertes junto a mim.
  Assustei-me.
  Não se tratava de uma cópia! Era o próprio Bolota!
  Interpelei, imediatamente, o nobre senhor, com voz de desespero, e ele, ao perceber que sua jornada chegara a bom termo, logo veio entregar-me de volta o meu filho canino.
  Eu, sem perceber, havia perdido e recuperado um filho canino. E não sofri a dura sensação da saudade, que, como dizia Chico Buarque, "dói como um barco que, aos poucos, descreve um arco e evita atracar no cais".

  Aprendi que é perigoso e negligente deixar nosso espírito divagando na distante Inglaterra do Século XV, quando nosso corpo está cuidando de preciosidades insubstituíveis.
  Aprendi, também, que, em um mundo de tanta má-fé, ainda resistem bravamente nobres indivíduos de boa-fé.
  Aprendi, igualmente, com essa saída despreocupada do Bolota por essas esquinas perigosas da vida, que os cachorros, "no mais das vezes, andam perdidos em um mundo distante, cheio de magias, aventuras e canções, e nós nem sequer podemos tocar-lhe a alma", parafraseando Vinícius de Moraes.
 E, ainda, por meio de uma chibatada de disciplina, percebi que necessitamos ter muito mais prudência para não sofrer perdas irreparáveis.

  Graças a Deus pela lição e pela proteção dispensada ao nosso primogênito canino.

 E sou eternamente grato aos nobres senhores que figuraram, como anjos, nesse pequena drama, que poderia ter degenerado para uma tragédia. Os simples mimos que lhes entreguei como recompensa não pagam, nem de longe, o resgate e a lição.
  Um dos nobres senhores é o sr. Hamilton, um leal protetor do condomínio do Bloco B.
  O outro é o marido da proprietária da loja "Depil Line Depilação", situada no subsolo do Bloco B da CLSW 104 (telefone 3341-3910).

 Homens como esses precisam ser homenageados e erguidos como exemplos a serem seguidos pela sociedade.

 E, quanto a mim, aprendi a lição: é preciso concentrar-se mais e ser mais prudente.

  O Bolota foi uma perda que - graças a Deus - não foi.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Primeiras impressões das mudanças feitas no Código Civil pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015)

  Hoje, 7/7/2015, foi publicada a Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que entrará em vigor a daqui 180 dias.
  O diploma modificou diversos dispositivos no Código Civil.
  Li, fiz anotações e gostaria de compartilhar algumas impressões, mas, desde logo, já me penitencio por eventual falha interpretativa que, naturalmente, pode surgir de uma leitura inicial.
   Apresso-me em compartilhar as impressões para fomentar o debate e aprender, e não para ensinar, razão por que rogo que todos fiquem bem à vontade para expressar opiniões contrárias. Quero aprender também o que a nova lei quis estabelecer.
  A nova lei busca, além de garantir direitos, eliminar referências terminológicas na legislação que estigmatizem as pessoas com deficiência. Mas, nesse legítimo e elogioso, a lei acabou por cometer alguns (e gravíssimos) pecados contra a proteção dessas pessoas.
  O novel diploma alterou o Código Civil em diversos pontos, dos quais destacamos estes:
  a) Não há mais incapacidade por deficiência mental (arts. 3º, 4º e 1.767, CC). O único caso de incapacidade absoluta é o de menores de 16 anos. A incapacidade relativa doravante só abrange 3 hipóteses: (1) menoridade entre 16 e 18 anos, (2) ébrios habituais, (3) viciados em tóxicos e (4) pródigos.
 b) Pessoa com deficiência mental pode ser testemunha (art. 226, CC).
 c) Não há mais invalidade do casamento por deficiência mental nem por ignorância de doença mental grave que torne a vida matrimonial insuportável (arts. 1.548, I, e 1.557, CC).
 d) Pessoa com deficiência "mental ou intelectual" pode casar expressando sua vontade diretamente ou por meio de responsável ou curador (art. 1550, § 2º, CC).
 e) Pessoas com deficiência física ou mental não estão mais sujeitas à curatela, mas apenas as pessoas inclusas no novo catálogo de incapazes (art. 1.767, CC). Todavia, apesar disso, o art. 1.769 do CC estabelece que o Ministério Público pode promover processos de definição de curatela em caso de deficiência mental ou intelectual. Esse texto legal gera dúvidas sobre o tema, conforme se exporá abaixo.
 f)  A própria pessoa com deficiência pode pedir direta e judicialmente a interdição (art. 1.768, IV, CC).
 g) Restringiu-se a legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo de definição da curatela a casos envolvendo pessoas com deficiência "mental ou intelectual" (art. 1.769, CC).
 h) Enfatizou-se a obrigatoriedade de o juiz servir-se de apoio de equipe multidisciplinar ao definir os limites da interdição (art. 1.771, CC).
i) A curatela somente envolverá limites patrimoniais ao interditado (art. 1.772, CC).
j) Admite-se a curatela compartilhada a mais de uma pessoa (art. 1.775-A, CC).
l) Prestigia-se o convívio familiar e comunitário da pessoa com deficiência e evita-se o seu recolhimento em estabelecimentos de internação (art. 1.777, CC).
m) Institui a Tomada de Decisão Apoiada como instrumento de que se pode servir a pessoa com deficiência (art. 1.783-A, CC).



   As mudanças, sem dúvidas, merecem aplausos em alguns aspectos, mas, numa primeira leitura, tenho que elas se maculam com alguns equívocos. Externo minhas críticas (que poderão ser modificadas em futuras leituras minhas):
 

1) A expressão "interdição" subsiste, com registro no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais (vide art. 1.771 e 1.773 do CC e a Lei nº 6.015/73). Ela se restringe aos casos das pessoas inclusas no novo rol de incapazes.

2) Pessoas com deficiência mental ou física NÃO estão sujeitas à interdição. Mas a nova legislação turbou a harmonia sistemática do Código Civil e gerou uma dúvida: elas podem ou não ter curadores? Por um lado, o novo art. 1.767 do CC e a revogação do art. 1.780 do CC afastam as pessoas com deficiência mental ou física das sujeitas à curatela. Por outro lado, paradoxalmente, o recente art. 1.769, I, do CC permite que o Ministério Público promova processo de definição de curatela "em caso de deficiência mental ou intelectual". E, ainda em contradição, o novo § 2º do art. 1.550 estabelece que a pessoa com deficiência mental ou intelectual pode expressar sua vontade de casar diretamente ou por meio de "responsável ou curador".
      Diante disso, a meu sentir, a melhor interpretação é que não se admite mais processo de definição de curatela para pessoas com deficiência física ou mental, salvo se estas se encaixarem em um dos casos de incapacidade (ex.: pessoa com deficiência que seja pródiga), caso em que a curatela decorrerá da incapacidade, e não da deficiência. Seriam nessas hipóteses de incapacidade de pessoa com deficiência que o Ministério Público teria legitimidade ativa para o processo de definição da curatela e que o nubente iria manifestar sua vontade de casar por meio de curador.

3) Pessoas com deficiência física ou mental, se quiserem (somente elas possuem legitimidade ativa para pedir judicialmente), podem promover processo de Tomada de Decisão Apoiada, por meio do qual elas elegerão, pelo menos, duas pessoas de confiança para prestar-lhe apoio na prática de atos da vida civil. Em princípio, não haverá qualquer lançamento da nomeação desses apoiadores nos registros públicos, por falta de previsão legal desse ato no cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais.

4) A nova lei alude a pessoas com deficiência mental e intelectual. Com fins de depuração terminológica para afastar a carga preconceituosa contida no adjetivo "mental", tem-se empregado a expressão "deficiência intelectual" para situações antes abrangidas por "deficiência mental". Confiram-se a propósito esta matéria: http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/entenda-a-diferenca-entre-deficiencia-intelectual-e-doenca-mental/; e este artigo: http://www.todosnos.unicamp.br:8080/lab/links-uteis/acessibilidade-e-inclusao/textos/deficiencia-mental-ou-deficiencia-intelectual/.

5) Impedir a anulação do casamento pelo fato de um dos cônjuges somente descobrir deficiência mental grave do outro consorte (a ponto de tornar insuportável a vida comum) após o casamento foi uma opção legislativa inadequada, a nosso sentir. Em primeiro lugar, lei alguma poderá manter o casal unido; o cônjuge se desvencilhará do vínculo conjugal pelo divórcio. Em segundo lugar, a nova lei deixará marcado, nos registros públicos, os rastros do casamento e imporá um novo estado civil a ambos, o de divorciado (o que pode gerar constrangimentos a determinadas pessoas).

6) Minha principal e mais grave crítica (e creio que o legislador não queria o que repugno aqui) é que, em princípio, atos jurídicos praticados por pessoas com deficiência mental SÃO plenamente válidos. Eles não precisam mais de representantes ou assistentes, pois são capazes. Afinal de contas, a invalidade dos negócios jurídicos é mecanismo de proteção dos incapazes (arts. 166, I, e 171, I, do CC), entre os quais não se incluem as pessoas com deficiência mental. Além do mais, se a pessoa com deficiência tiver apoiadores nomeados com base no art. 1.783-A do CC, a falta de prestação de informações por parte desses apoiadores não invalida o ato jurídico, pois, além de não haver previsão legal de que esses apoiadores devem participar do ato jurídico como representantes ou assistentes, a situação jurídica de apoiador não é oponível contra terceiros por falta de previsão legal e de publicidade nos registros públicos.
  "Resumindo a ópera", pessoas com gravíssima deficiência mental podem, sozinhas, praticar atos jurídicos (assinar contratos, por exemplo), sem poder invocar a invalidade do ato. Não importa se o ato jurídico praticado pela pessoa com deficiência mental foi anterior ou posterior a qualquer processo de Tomada de Decisão Apoiada (lembre-se de que não caberia processo de interdição ou de curatela, segundo o texto legal)! O ato jurídico é sempre válido.
  É certo que o legislador não quis esse absurdo, mas foi isso que ele escreveu no Código Civil. Se a lei não for modificada a tempo, caberá à jurisprudência tentar consertar os rumos tortos tomados pelo novo diploma. Talvez, uma forma de contornar isso reside na investigação da boa-fé: se quem contratar com pessoa com deficiência estiver de má-fé (sabe da situação de desvario), o negócio será nulo por ofensa à boa-fé, cuja observância seria, para esse efeito de nulidade absoluta, considerada como uma lei imperativa (art. 166, VII, do CC).
  Outra forma - um "jeitinho" hermenêutico - é imprimir interpretação ao novo inciso III do art. 4º do CC, que arrola, como relativamente incapaz, "aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade". Em respeito ao histórico desse enunciado normativo, que, antes do novo diploma, se destinava a classificar como absolutamente incapazes pessoas que, embora não tivessem deficiência intelectiva, estavam fisicamente impossibilitados de exprimir a vontade (ex.: pessoas em coma), a interpretação adequada do inciso III do art. 4º do CC não poderia abranger pessoas com deficiência mental ou intelectiva. Todavia, pode-se distorcer esse preceito e refugar o seu histórico para considerar que quem não pode exprimir adequadamente a vontade é incapaz, seja de modo temporário, seja permanentemente. Mas essa interpretação, além de ser desconectada com o histórico do enunciado normativo, corrompe a nova legislação, que rejeitou o rótulo de incapaz para pessoas com deficiência.



Observação final: o legislador, sem enxergar as consequências graves acima, realmente quis excluir as pessoas com deficiência do rol de incapacidade, conforme se pode ler deste excerto do parecer proferido no âmbito do Senado Federal para o Projeto de Lei do Senado nº 6, de 2013, que gerou a Lei 13.146/2015:


"Entendemos, na linha da Convenção, que as pessoas com deficiência não podem sofrer limitações na sua capacidade civil. Assim, impõe-se a revogação de toda a legislação que dispõe em sentido contrário. Os institutos da tutela e da curatela têm sido empregados de modo retrógrado e draconiano, limitando exageradamente a capacidade das pessoas que deveriam ser suas beneficiárias. Com as alterações promovidas pelo SCD, apenas os menores de dezesseis anos seriam absolutamente incapazes, prevalecendo à capacidade relativa para os ébrios e os toxicômanos, além daqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. A curatela passa a considerar apenas os critérios de discernimento e capacidade de exprimir a vontade, deixando de considerar a existência de deficiência ou enfermidade. Às pessoas com deficiência, especificamente, seriam aplicáveis as regras previstas nos arts. 84 a 87 do SCD, e na nova redação dada ao art. 1.769 do Código Civil. " (http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/167215.pdf)





quarta-feira, 24 de junho de 2015

Pensão alimentícia paga a neto ou a filho deve ser considerada antecipação de herança?

      Amigos.

 Uma situação a respeito da qual não há muitos escritos na doutrina é resumida na seguinte pergunta: a pensão alimentícia paga ao filho maior ou ao neto pode ser considerada antecipação de legítima (herança)?
 Busquei refletir sobre o tema. Convido-os a ler o artigo que escrevi e a expor suas impressões, sejam  favoráveis, sejam contrárias.
 Eis o texto: https://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td177

Abraços

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Anuência do credor para alienação de bens objeto de garantia?


(Des?)Necessidade de anuência do credor para transferência de imóveis ou móveis objeto de garantia real?

Carlos Eduardo Elias de Oliveira


1. QUADRO ATUAL SOBRE A ANUÊNCIA DO CREDOR NOS CASOS DE TRANSMISSÃO DE BENS OBJETO DE GARANTIA REAL

1)      No caso de bens móveis, não há necessidade de consentimento do credor para a alienação da propriedade onerada ou para a cessão do direito real de aquisição do fiduciário, salvo neste caso:

a.       Cédula de Crédito Rural, Industrial, Comercial e à exportação (art. 59 do DL 167/67; art. 51 do DL 413/69; art. 5º da Lei nº 6.840/80; art. 3º da Lei 6.313/75).

2)      Venda de imóvel onerado por garantia real não depende de consentimento do credor (art. 1.475 do CC), salvo nestes casos:

a.       Imóvel financiado no âmbito do SFH (art. 1º da Lei 8.004/90);

b.      Cédula de Crédito Rural, Industrial, Comercial e à exportação (art. 59 do DL 167/67; art. 51 do DL 413/69; art. 5º da Lei nº 6.840/80; art. 3º da Lei 6.313/75).

3)      Cédula de Produto Rural, Cédula de Crédito Imobiliária e Cédula de Crédito Bancária não excepcionam a regra anterior por falta de previsão legal.

4)      Cessão de direito real de aquisição do devedor fiduciante sobre imóvel DEPENDE de consentimento do credor fiduciário, conforme interpretação que prevalece acerca do art. 29 da Lei nº 9.514/97 (Art. 29. O fiduciante, com anuência expressa do fiduciário, poderá transmitir os direitos de que seja titular sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia, assumindo o adquirente as respectivas obrigações).

5) Cessão de contrato envolvendo loteamento não exige consentimento do loteador (art. 31, § 1º, da Lei 6.766/79). Há quem sustente que a dívida referente ao pagamento do preço passará a ser do cessionário, entendimento ao qual não aderimos. Preferimos entender que esse preceito apenas autoriza a cessão do crédito (direito a receber o lote com a construção), e não a assunção de dívida, que, nos termos do art. 299 do CC, reclamaria anuência do credor (o loteador ou, no caso de financiamento bancário, o banco). Transcreve-se o dispositivo retrocitado:

      Art. 31. O contrato particular pode ser transferido por simples trespasse, lançado no verso das vias em poder das partes, ou por instrumento em separado, declarando-se o número do registro do loteamento, o valor da cessão e a qualificação do cessionário, para o devido registro.
§ 1º A cessão independe da anuência do loteador mas, em relação a este, seus efeitos só se produzem depois de cientificado, por escrito, pelas partes ou quando registrada a cessão.
§ 2º - Uma vez registrada a cessão, feita sem anuência do loteador, o Oficial do Registro dar-lhe-á ciência, por escrito, dentro de 10 (dez) dias.
 


2. NOSSA RESSALVA QUANTO À INTERPRETAÇÃO VIGENTE DO ART. 29 DA LEI Nº 9.514/97 E QUANTO À NECESSIDADE DE MODIFICAÇÃO DAS DEMAIS NORMAS CITADAS ACIMA

A nosso sentir, a interpretação vigente para o art. 29 da Lei 9.514/97 não é a mais adequada.

Explica-se.

Há duas relações jurídicas entre as partes: (1) uma de natureza contratual, que sói ser um mútuo, e (2) outra de alienação fiduciária em garantia, que, com o registro no álbum imobiliário, ganha natureza real.

Sob a perspectiva desses contratos, o fiduciante possui um crédito, que é o direito real de (re)aquisição, e uma dívida garantida por um direito real (a propriedade fiduciária), que é o valor a ser pago por conta do mútuo. Não há qualquer prejuízo ao credor, se o devedor transmitir a terceiros o seu direito real de aquisição (uma cessão de crédito), pois ele continuará sendo o devedor e o imóvel seguirá vinculado ao pagamento da dívida por conta da garantia real.  Quem adquirir esse direito real de reaquisição está ciente de que, no caso de inadimplência, o imóvel responderá pela dívida.

Não há, portanto, qualquer prejuízo ao credor. Pelo contrário, haverá benefícios a ele, visto que, na prática, haverá mais uma pessoa interessada no pagamento da dívida, o terceiro adquirente, que, se pagar a dívida, sub-roga-se nos direitos do credor contra o devedor (arts. 346, III, e 1.368 do CC).

Em outras palavras, não há necessidade de o credor consentir com a cessão de crédito (transmissão do direito real de aquisição).

O que seria potencialmente nocivo ao credor é a assunção de dívida (ou cessão de débito), pois o novo devedor poderia não ter condições de solvência adequada. É por essa razão que, em regra, a assunção de dívida depende de consentimento expresso do credor, conforme art. 299 do CC.

Como se vê, o credor só precisa consentir com a assunção de dívida, e não com a cessão de crédito.

De passagem, relembre-se que a doutrina designa de “cessão de contrato” a transmissão da posição contratual de uma pessoa, quando esta é credora e devedora. A cessão de contrato implica, pois, uma cessão de crédito em concomitância com uma assunção de dívida. Para a cessão do contrato, é fundamental o consentimento do credor, apenas porque ela envolverá uma assunção de dívida (que reivindica a aquiescência creditoris).

É à luz dessas considerações que deve ser interpretado o art. 29 da Lei nº 9.514/97. Nesse dispositivo, está expresso que o adquirente assumirá “ as respectivas obrigações” com “a transmissão dos direitos de que [o fiduciante] seja titular”. O preceito, pois, cuida de uma cessão de contrato, e não apenas de uma cessão de crédito ou apenas de uma assunção de dívida. E, por isso, o dispositivo exige o consentimento expresso do credor fiduciário para essa transmissão da posição contratual.

O dispositivo, ao nosso aviso, não cuida da pura e simples cessão de crédito (transmissão do direito real de aquisição), de modo que o devedor fiduciante poderá livremente transferir seus direitos a terceiros, com a ciência de que, além de o imóvel continuar vinculado ao pagamento da dívida por conta da propriedade fiduciária (que é uma garantia real), ele seguirá obrigado pessoalmente à satisfação da dívida. O adquirente, a seu turno, somente se tornará um terceiro (e não parte) na relação contratual e, se quiser, poderá pagar a dívida e sub-rogar-se nos direitos do credor contra o devedor fiduciante.

Portanto, entendemos que o art. 29 da Lei nº 9.514/97 não exige a anuência do credor fiduciário para a mera cessão de crédito (a transmissão do direito real de aquisição), mas apenas para a cessão de contrato (cessão de crédito simultânea com a assunção de dívida).

E mais: com base no raciocínio acima, não enxergamos motivos razoáveis na subsistência da exigência de anuência do credor no caso de mera alienação da coisa objeto de garantia de financiamento no âmbito do SFH e de cédulas de crédito rural, industrial, comercial e à exportação. As respectivas normas deveriam ser alteradas, para preservar essa exigência somente para as hipóteses de cessão de contrato (por esta envolver a assunção de dívida).

Essa interpretação que propomos parece mais compatível com a função social da propriedade, por estimular a circulação de bens, evitar a manutenção de bens em situação de ócio (o devedor, por vezes, não tem interesse em usar o bem) e não prejudicar o credor (aliás, o credor será beneficiado com o acréscimo de mais um interessado no pagamento da dívida).

terça-feira, 7 de abril de 2015

O perigo da desatenção à jurisprudência dos Tribunais: a questão da cumulação de divórcio, guarda e alimentos.

   
       Hoje, uns amigos alunos queixaram-se no meio da aula de Direito Civil, afirmando que alguns juízes no DF, por decisão de emenda à inicial, estão rejeitando a cumulação de pedidos de divórcio, guarda e alimentos, sob o argumento de que o filho é parte legítima apenas para a ação de guarda.
       Trata-se, a meu sentir, de um ato inusitado que caminha na contramão dos princípios reitores do processo civil e de um desrespeito a uma tradição "milenar".
      Afronta, também, a jurisprudência do TJDFT, conforme citado ao final deste texto.
      O pior em tudo isso é que os advogados se veem em um dilema: (1) interpor recurso e aguardar "meses e meses" para comprovar o equívoco das decisões de emenda à inicial, tudo em prejuízo às partes, que não podem aguardar muito tempo para resolver problemas de direito de família, ou (2) emendar a inicial e propor a ação de guarda em apartado, poupando esses longos meses de recurso.
     Geralmente, a pressa prevalece diante da busca pela solução justa em uma questão processual.
     Fatos como esses, em que juízes assumem entendimentos pessoais em desconexão com a jurisprudência do Tribunal local, convencem-me, a cada dia mais, que a autonomia do juiz de primeiro grau deve ser vista sob uma perspectiva institucional, e não singular.
       Um processo civil mais célere e justo passa, necessariamente, pelo aumento das hipóteses de vinculação das instâncias de primeiro piso aos julgados dos Tribunais.
      Convicções estritamente individuais não podem sobrepor-se às convicções institucionais do Poder Judiciário.
      A autonomia do magistrado não é individual, e sim institucional.
      A autonomia é do Poder Judiciário, e não de um de seus membros.
      Encerro trazendo a lume julgado do TJDFT que sintetiza bem o descabimento das decisões de emenda à inicial no caso de cumulação de pedidos de divórcio, guarda e alimentos:


EMENTA - PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE CONHECIMENTO. PEDIDOS DE DIVÓRCIO E GUARDA DOS FILHOS. CUMULAÇÃO. POSSIBILIDADE. ART. 292 DO CPC.
1. É possível a cumulação (objetiva) dos pedidos de divórcio e guarda dos filhos, seja porque são compatíveis, como porque ambos inserem-se na competência do Juízo e são suscetíveis de julgamento conjunto, segundo o rito ordinário (CPC, art. 292, § 2º).
2. Jurisprudência: "Em atenção aos princípios da efetividade e da economia processual, é possível a cumulação dos pedidos de divórcio com alimentos, guarda e regulamentação de visitas (CPC 292). 2. Deu-se provimento ao agravo para determinar o prosseguimento do feito em relação a todos os pedidos formulados na inicial." (20130020064730AGI, Relator: Sérgio Rocha, 2ª Turma Cível, DJE 10/06/2013, p. 71).
3. Doutrina de Moacyr Amaral dos Santos: "É admissível a cumulação, na petição inicial, de vários pedidos, sejam eles conexos ou não, uma vez dirigidos contra o mesmo réu, ou réus. Tal é a chamada cumulação objetiva, em que a res, o petitum não é um, mas são vários" (in Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, vol. 2, 26ª edição, Ed. Saraiva, 2010).
4. Parecer do Ministério Público pelo conhecimento e provimento.
5. Agravo provido.
(TJDFT, Acórdão n.798717, 20140020066462AGI, Relator: JOÃO EGMONT, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 11/06/2014, Publicado no DJE: 14/07/2014. Pág.: 190)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Corte de energia elétrica e o STJ: breve resumo


(1) Corte de energia elétrica depende de prévia notificação e não pode ocorrer:   


a       a) por débito antigo, mas apenas por conta regular, relativo ao mês de consumo;
         b)  débito por suposta fraude de medidor, apurado unilateralmente pela concessionária de serviço público. Ressalva-se que:

                                               i.     no caso de cobrança de diferenças decorrentes de fraude de medidor, se houver acordo entre as partes, o inadimplemento das prestações desse acordo autoriza o corte da energia elétrica;
                                             ii.     no caso de a cobrança decorrer de processo administrativo em que foi concedida ampla defesa ao consumidor, cabe o corte de energia. Afinal de contas, foi garantido o contraditório. Entendimento contrário seria prestigiar o fraudador em comparação com o mero inadimplente, pois seria o corte de energia elétrica apenas para este último.

c             c) por dívida discutida judicialmente quando proveniente de suposta fraude em medidor de energia, pois configura cobrança vexatória (art. 42 do CDC) suspender o fornecimento de energia a consumidor que pretende discutir judicialmente débito que reputa indevido

  (2) Cabe dano moral pelo corte indevido. Há precedentes do STJ mantendo valores de R$ 10.000,00 e de R$ 30.000,00 com base na Súmula n. 7/STJ.
       
   (3) Vale a pena conferir este resumo feito pelo STJ: http://stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=111721. Transcrevo-o abaixo:

ESPECIAL
A Justiça e o consumidor de olho no fornecimento de energia elétrica
O domínio humano da energia elétrica a partir do século XIX impulsionou o crescimento econômico, dinamizou a vida doméstica, as comunicações, o lazer, o conhecimento... Entre incontáveis efeitos desse avanço tecnológico na sociedade moderna, há também relações jurídicas que continuamente demandam a intervenção dos tribunais.

E são muitos os conflitos que chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em busca de solução na área de energia elétrica. Algumas ações discutem a responsabilidade das concessionárias por acidentes ou falhas do serviço. Outras tratam da cobrança de tarifas ou do corte no fornecimento.

O STJ, por exemplo, decidiu que o consumidor é parte legítima para contestar cobrança indevida de tributo indireto sobre energia elétrica. Em outra decisão, afirmou que aquele que frauda o medidor de consumo pode ter o serviço suspenso. Em um recurso, decidiu ainda que, sem aviso prévio, o corte de energia por falta de pagamento é ilegal. Confira algumas das decisões importantes nessa área.

Responsabilidade objetiva

Em fevereiro deste ano, a Terceira Turma, por maioria, condenou uma concessionária a pagar indenização por danos morais e materiais à viúva e ao filho de um trabalhador que morreu eletrocutado em 1988 quando fazia a limpeza de uma piscina, com base na responsabilidade objetiva da empresa (REsp 1.095.575).

Devido a um aterro, feito durante a reforma do imóvel, o nível da área da piscina foi elevado e a distância em relação à rede elétrica acabou ficando menor que a recomendada pelas normas de segurança. Ao fazer seu trabalho, a vítima encostou a haste do aparelho de limpeza nos fios de alta tensão e sofreu descarga elétrica fatal.

A mulher e o filho, menor à época do acidente, ajuizaram ação pedindo reparação dos danos materiais e compensação por danos morais. A concessionária alegou falta de culpa pelo ocorrido, bem como a culpa exclusiva da vítima ou dos donos do imóvel.

A Terceira Turma reconheceu a responsabilidade objetiva da concessionária, que não fiscalizou a reforma realizada no imóvel. Ela não teria observado as regras mínimas de segurança estabelecidas pela legislação.

“O risco da atividade de fornecimento de energia elétrica é altíssimo, sendo necessária a manutenção e fiscalização rotineira das instalações, exatamente para que acidentes como aquele que vitimou o marido e pai dos recorrentes sejam evitados”, disse a relatora da matéria, ministra Nancy Andrighi. Para ela, “de nada adianta uma única verificação feita pela concessionária quando da implantação da rede elétrica”.

A ministra assinalou que o Código Civil de 1916, vigente na época do acidente, não tratava expressamente da responsabilidade objetiva em decorrência do risco da atividade, o que só veio a ser feito no código de 2002. Mesmo assim, segundo ela, ainda antes da Constituição de 88 e da entrada em vigor da nova legislação civil, a responsabilidade objetiva das concessionárias de eletricidade já era reconhecida judicialmente, com base no risco da atividade.

Aposentadoria especial

A Primeira Seção decidiu, em recurso repetitivo, que a exposição habitual do trabalhador à energia elétrica pode motivar a aposentadoria especial (REsp 1.306.356).

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) argumentou em juízo que a exclusão da eletricidade da lista de agentes nocivos, em decreto de 1997, tornaria impossível mantê-la como justificadora do tempo especial para aposentadoria.

O ministro Herman Benjamin, no entanto, sustentou que a interpretação sistemática de leis e normas que regulam os agentes e atividades nocivos ao trabalhador leva a concluir que tais listagens são exemplificativas. Assim, deve ser considerado especial o tempo de atividade permanente e habitual que a técnica médica e a legislação considerem prejudicial ao trabalhador.

O ministro destacou que a jurisprudência já havia fixado esse entendimento na Súmula 198 do Tribunal Federal de Recursos (TFR). Segundo a súmula, "atendidos os demais requisitos, é devida a aposentadoria especial, se perícia judicial constata que a atividade exercida pelo segurado é perigosa, insalubre ou penosa, mesmo não inscrita em regulamento”.

Corte de energia

Muitas demandas chegam ao STJ discutindo o corte no fornecimento de energia elétrica. Segundo decisão proferida em um recurso, se os usuários inadimplentes não forem previamente avisados sobre o corte de energia, a suspensão do serviço será ilegal.

A Primeira Turma negou recurso apresentado por uma concessionária, que pretendia mudar decisão de segunda instância que restabeleceu o fornecimento de energia de um condomínio com 300 apartamentos, em Maceió, mesmo estando com pagamento em atraso (REsp 1.306.356).

A empresa alegou que o condomínio era devedor frequente, tendo sido, inclusive, condenado em ação de cobrança de débitos. Segundo a empresa, o condomínio teria admitido a condição de devedor ao ingressar com mandado de segurança contra o corte no fornecimento de energia, daí a possibilidade de interrupção no serviço.

Em primeiro grau, o condomínio garantiu o restabelecimento da energia, porque os artigos 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) impediriam a suspensão, por se tratar de fornecimento considerado essencial e de prestação contínua. O Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) negou o apelo da concessionária, sob o argumento de que os consumidores teriam de ser avisados previamente sobre a suspensão, o que não ocorreu.

No recurso apreciado pelo STJ, o relator, ministro Teori Albino Zavascki, destacou que a regra do CDC não é absoluta. Deve, sim, ser conjugada com a Lei 8.987/95 – a Lei de Concessões, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos. Em seu artigo 6º, a lei possibilita a interrupção após aviso prévio, nos casos de inadimplemento. No entanto, de acordo com o ministro Zavascki, ante a falta do aviso, como no caso julgado, o corte é ilegítimo.

Cobrança de dívida

No que se refere à fraude no medidor, o STJ entende que é possível o corte no fornecimento de energia, mesmo que tenha realizado um acordo, que mais tarde foi descumprido (REsp 806.985).

Em um dos recursos julgados, a concessionária realizou fiscalização na residência da usuária e ingressou na Justiça para cobrar diferenças entre o consumo médio, considerando os aparelhos eletrodomésticos existentes na casa, e os valores efetivamente pagos. A especificidade do processo é que foi feito um acordo com a consumidora, que pagou apenas duas parcelas do ajuste.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) entendeu que a dívida decorria do inadimplemento de acordo acertado para solucionar diferenças a título de recuperação de consumo de “crédito passado”, que nada teria a ver com a relação ordinária da prestação do serviço. Segundo o órgão, o crédito antigo deveria ser recuperado pela via do processo judicial, segundo as regras gerais previamente estabelecidas, não sendo possível o corte de energia do usuário, como se fosse um devedor contumaz.

O ministro João Otávio de Noronha, entretanto, entendeu que não se tratava de mero inadimplemento de contas antigas, como em caso em que é esquecida a cobrança por parte da concessionária. Se esse fosse o caso, no seu ponto de vista, não seria razoável a interrupção do serviço, até porque seria de se supor que a concessionária já haveria absorvido o prejuízo.

O caso dos autos, segundo o ministro, tratava-se de uma fraude, em que a companhia buscou cobrar os valores cabíveis tão logo soube de sua existência. “Assim, visto que não se trata de débitos passados, mas de valores que estavam sendo negociados, entendo que é lícito a concessionária interromper o fornecimento se, após o aviso prévio, o consumidor devedor não solver a dívida oriunda de contas geradas pelo consumo de energia”, disse o ministro.

Noronha destacou que não modifica a conclusão o fato de que não se tratava de simples inadimplência relativa a contas antigas, mas de débitos apurados unilateralmente pela concessionária. “Ora, evidentemente que o consumidor que frauda medidor tem intenção de que o real consumo de energia por ele realizado seja camuflado, com o fim de pagar menos”. Em tais casos, não há dúvida quanto à existência de energia consumida que não foi quitada.

Seria um contrassenso, segundo o ministro, o entendimento de que é permitida a suspensão de energia por consumo ordinário não pago, e de que não é permitida na hipótese de consumo não pago porque a apuração não foi exata em decorrência da camuflagem praticada pelo consumidor.

Apuração unilateral

O STJ tem o entendimento de que, nos casos de irregularidade no medidor, a concessionária deve utilizar os meios ordinários de cobrança para o recebimento da diferença, não a interrupção do fornecimento. Com base nessa jurisprudência, a Segunda Turma rejeitou recurso especial ajuizado por concessionária para reverter decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (REsp 633.722).

A concessionária apresentou prova pericial que constatou irregularidades anteriores na medição do fornecimento. Mas não conseguiu comprovar a existência de fraude no equipamento, que, segundo a concessionária, gerou uma diferença de 33% entre o que foi efetivamente utilizado pelo consumidor e o que ficou registrado no medidor irregular, nos 24 meses anteriores.

Como o consumidor vinha pagando as faturas mensais regularmente, a Justiça fluminense entendeu que o corte seria uma forma de coação para forçar o pagamento de tal diferença, procedimento inadimissível no sistema jurídico.

No recurso ajuizado no STJ, a concessionária sustentou que a falta de pagamento de valores relativos a diferenças apuradas ante a constatação de irregularidades no medidor permite o corte no fornecimento da energia. Acompanhando o voto do relator, ministro Herman Benjamin, a Turma considerou que a concessionária queria utilizar o corte de energia para forçar o consumidor a reconhecer as conclusões técnicas a que ela chegou unilateralmente.

Em seu voto, o relator ressaltou que o caso não envolvia discussão sobre energia ordinariamente fornecida, mesmo porque o consumidor recorrido estava em situação de adimplência, exceto em relação ao período em que a concessionária questionava a medição. Dessa forma, em razão de os débitos serem antigos e contestados pela consumidora, não se aplica a Lei de Concessões.

Por não se tratar de devedor contumaz, a Turma decidiu que a concessionária de serviço público deveria utilizar os meios ordinários de cobrança, não a interrupção do fornecimento para buscar a quitação do débito.

Contestação judicial

Um consumidor de São Paulo garantiu o direito ao fornecimento de energia elétrica enquanto contestava judicialmente um débito, considerado por ele indevido (Ag 697.680). A concessionária apurou unilateralmente uma suposta fraude e, com base em um termo de irregularidade, passou a cobrar do consumidor a diferença entre o que alegava ser o consumo real e o valor pago durante cinco anos, inclusive cortando o serviço.

A Segunda Turma não chegou a analisar o recurso apresentado, que pretendia reformar decisão favorável ao consumidor no Tribunal de Justiça de São Paulo. Mas o relator, ministro Castro Meira, explicou que a interrupção do fornecimento de energia daquele que procura a Justiça para discutir os débitos que considera indevidos é uma forma de constrangimento ilegal.

O ministro destacou haver no STJ entendimento de que é lícito à concessionária interromper o fornecimento se, após aviso prévio, o consumidor permanecer inadimplente no pagamento da conta. No entanto, tornado o débito litigioso, o devedor não poderá sofrer nenhuma retaliação por parte do credor.

Furto de energia

O STJ decidiu em 2010 que a concessionária pode suspender o fornecimento de energia elétrica em caso de fraude devidamente apurada em processo administrativo. O então presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha, deferiu parcialmente o pedido apresentado pela companhia e suspendeu liminar de juízo de primeiro grau que impedia o corte no fornecimento antes da realização da perícia técnica por órgão imparcial, seguindo procedimento previsto na Resolução 456/00 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

A concessionária alegou, no pedido, que, ao prevalecer a liminar da Justiça paulista, haveria completa inversão de valores. Seria mais vantajoso ser fraudador do que apenas inadimplente. O cidadão que fraudasse o medidor de consumo de energia não poderia ter corte no fornecimento por não pagamento da conta de luz. Já aquele que fossse apenas inadimplente teria suspenso o serviço de eletricidade e a religação ficaria condicionada ao pagamento.

Segundo o ministro Cesar Rocha, a impossibilidade de corte no fornecimento para os consumidores inadimplentes e, principalmente, nas hipóteses em que houver fraude, pode ocasionar grave lesão à economia pública. O ministro defendeu que a decisão fosse intermediária a fim de evitar grave lesão à ordem e à economia pública, sem prejudicar o direito de defesa do consumidor acusado de fraude.

Cesar Rocha decidiu pela suspensão de parte da liminar para permitir o corte no fornecimento de energia elétrica na hipótese de não pagamento dos valores resultantes de fraude, apurados em processo administrativo, com direito à ampla defesa do consumidor e dispensada perícia quando não requerida por ele (SLS 1.244).

Dívida pregressa

Segundo o STJ, nos casos em que fica configurada a cobrança de valores não contemporâneos à prévia notificação, não deve haver a suspensão do fornecimento. Foi o que ficou decidido em recurso julgado pela Segunda Turma em processo do Rio Grande do Sul (REsp 865.841).

No caso, a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) cortou o fornecimento de uma usuária após constatar irregularidades no medidor. O mau funcionamento foi resolvido e a companhia fez uma cobrança com base no maior consumo da usuária em 12 meses.

Conforme posição do Tribunal nesse recurso, o corte de energia pressupõe inadimplemento de conta relativa ao mês do consumo, sendo inviável a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos. Para tais casos, deve a companhia usar dos meios ordinários de cobrança, pois não se admite qualquer espécie de constrangimento ou ameaça ao consumidor.

A concessionária alegou que o corte era possível em função do artigo 6º, parágrafo 3º, da Lei de Concessões. Esse artigo obriga que as empresas forneçam serviço contínuo e adequado aos usuários, podendo interrompê-lo em caso de emergência ou inadimplemento, após aviso prévio.

O ministro Humberto Martins, relator da matéria no STJ, considerou que, apesar de a Primeira Turma ter considerado lícito a empresa interromper o fornecimento mediante aviso prévio em caso de inadimplemento, isso não se aplica a casos em que há cobrança de débitos pretéritos.

O ministro observou que o CDC se aplica aos serviços públicos prestados por concessionárias e que o artigo 42 prevê que só podem ser usados meios ordinários de cobrança, não se admitindo constrangimento ou ameaça aos usuários.

Ele citou a jurisprudência do Tribunal segundo a qual só se admite a suspensão do fornecimento no caso de débitos relativos ao mês de consumo e em contas regulares. Como haveria diferença da tarifa habitual devido ao “ressarcimento” dos meses quando o medidor não funcionava adequadamente, o fornecimento não poderia ter sido suspenso.

Tributo sobre energia

O STJ garantiu o direito de o consumidor reclamar judicialmente dos aumentos no preço de energia elétrica, em decorrência de práticas tributárias adotadas pelo governo.

Segundo decisão da Primeira Seção, no julgamento de um recurso do Rio Grande do Sul, qualquer excesso fiscal imposto à concessionária é repassado automaticamente ao consumidor final em caso de serviço essencial explorado em regime de monopólio. Por isso, ele é o único interessado em contestar a cobrança indevida de tributo (REsp 1.278.688).

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a legitimidade de uma empresa, consumidora final de energia elétrica, para impugnar a cobrança de imposto sobre a demanda contratada em vez da efetivamente fornecida. No caso julgado em regime de repetitivo, tratava-se de distribuidora de bebida que pretendia restituição de imposto recolhido pela fabricante.

A Seção entendeu que a concessionária de energia posiciona-se ao lado do estado, no mesmo polo da relação, já que o repasse vai para o consumidor final. A posição da concessionária é “absolutamente cômoda e sem desavenças, inviabilizando qualquer litígio”, já que a lei impõe a majoração da tarifa nessas hipóteses, para manter o equilíbrio econômico-financeiro da concessão – afirmou o ministro Cesar Asfor Rocha, em voto-vista apresentado na Seção.

“O consumidor da energia elétrica, observada a relação paradisíaca concedente/concessionária, fica relegado e totalmente prejudicado e desprotegido”, afirmou o ministro.

De acordo com o relator desse recurso, ministro Herman Benjamin, a concessionária atua mais como substituto tributário no caso, sem interesse em resistir à exigência ilegítima do fisco, do que como consumidor de direito. “Inadmitir a legitimidade ativa processual em favor do único interessado em impugnar a cobrança ilegítima de um tributo é o mesmo que denegar acesso ao Judiciário em face de violação ao direito”, concluiu.

Energia não consumida

A Primeira Seção do STJ decidiu, também em repetitivo, que o consumidor possui legitimidade para contestar a cobrança de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) no caso de energia elétrica que, apesar de contratada, não foi efetivamente fornecida.

Os ministros rejeitaram o argumento do fisco de que o destinatário final da energia não integra a relação tributária, já que não arca diretamente com os custos do imposto. Para o ministro Cesar Rocha, esse entendimento é perverso quando aplicado aos serviços de concessionárias públicas.

“Sem dúvida alguma, sobretudo no tocante à cobrança, ao cálculo e à majoração dos tributos – à exceção do Imposto de Renda –, o poder concedente e a concessionária encontram-se, na verdade, lado a lado, ausente qualquer possibilidade de conflito de interesses”, sustentou.

O ministro explicou que, nas hipóteses de mudança nos tributos, a lei protege a concessionária, obrigando a revisão dos valores de tarifas a fim de preservar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. “Sob esse enfoque é que o estado-concedente e a concessionária do serviço público encontram-se lado a lado, no mesmo polo, em situação absolutamente cômoda e sem desavenças, inviabilizando qualquer litígio em casos como o presente”, anotou. 




quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Comentários a esta questão (CESPE): O único bem imóvel residencial do devedor é penhorável, desde que esteja desocupado.

TRT10 - 2013 - No que concerne ao direito de família e ao direito das sucessões, julgue os itens subsequentes.

O único bem imóvel residencial do devedor é penhorável, desde que esteja desocupado.

Gabarito: Certo.

Se o imóvel está desocupado, mas está sendo aproveitado pela família (que, por exemplo, aluga-o e, com os rendimentos, sustenta-se), há impenhorabilidade.
Se, porém, o imóvel desocupado está sem uso algum, o bem é penhorável.
É essa a leitura dos precedentes do STJ acerca da Lei nº 8.009/90:

PROCESSO CIVIL. AGRAVO NO RECURSO ESPECIAL. IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL DESOCUPADO.
- A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que o fato de a entidade familiar não utilizar o único imóvel como residência não o descaracteriza automaticamente, sendo suficiente à proteção legal que seja utilizado em proveito da família, como a locação para garantir a subsistência da entidade familiar.
- Neste processo, todavia, o único imóvel do devedor encontra-se desocupado e, portanto, não há como conceder a esse a proteção legal da impenhorabilidade do bem de família, nos termos do art. 1º da Lei 8.009/90, pois não se destina a garantir a moradia familiar ou a subsistência da família. Precedentes.
- Agravo no recurso especial não provido.
(AgRg no REsp 1232070/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/10/2012, DJe 15/10/2012)

CIVIL E PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO LEGAL VIOLADO. AUSÊNCIA. SÚMULA 284/STF. BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL DESOCUPADO, MAS AFETADO À SUBSISTÊNCIA DOS DEVEDORES.
IMPENHORABILIDADE. DESNECESSIDADE DE PROVAR A INEXISTÊNCIA DE OUTROS BENS IMÓVEIS. ART. ANALISADO: 5º DA LEI 8.009/1990.
1. Embargos à execução distribuídos em 04/12/2006, dos quais foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 15/08/2013.
2. A controvérsia cinge-se a decidir se o imóvel dos recorrentes constitui bem de família.
3. Não se conhece do recurso especial quando ausente a indicação expressa do dispositivo legal violado.
4. A regra inserta no art. 5º da Lei 8.009/1990, por se tratar de garantia do patrimônio mínimo para uma vida digna, deve alcançar toda e qualquer situação em que o imóvel, ocupado ou não, esteja concretamente afetado à subsistência da pessoa ou da entidade familiar.
5. A permanência, à que alude o referido dispositivo legal, tem o sentido de moradia duradoura, definitiva e estável, de modo a excluir daquela proteção os bens que são utilizados apenas eventualmente, ou para mero deleite, porque, assim sendo, se desvinculam, em absoluto, dos fins perseguidos pela norma.
6. Como a ninguém é dado fazer o impossível (nemo tenetur ad impossibilia), não há como exigir dos devedores a prova de que só possuem um único imóvel, ou melhor, de que não possuem qualquer outro, na medida em que, para tanto, teriam eles que requerer a expedição de certidão em todos os cartórios de registro de imóveis do país, porquanto não há uma só base de dados.
7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.

(REsp 1400342/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/10/2013, DJe 15/10/2013)