domingo, 29 de abril de 2018

Minha palestra na Conferência Nacional de Cartórios: limites jurídicos aos cartórios.







             Nossa palestra na Conferência Nacional dos Cartórios em Foz do Iguaçu em 2018
     
Olá, meus amigos e minhas amigas.
     
Tivemos a oportunidade de falar um pouco sobre os limites jurídicos do empreendedorismo pelos serviços notariais e de registro (os populares cartórios) e sobre a relevância dessas instituições para a sociedade. Deixo abaixo um texto com a minha palestra, embora, como não reduzi a exposição a leituras, mas preferi conversar com o público livremente, o referido texto apenas contém as ideias principais que, durante a palestra, externei aos colegas.
Deixo também uma foto com a programação do Congresso, que realmente foi muito rico em ideias.
Veja o texto ao final deste post.
Abraços

Carlos E Elias









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CONFERÊNCIA NACIONAL DOS CARTÓRIOS (26 a 28 de abril de 2018, Foz do Iguaçu)
Tema principal: Cartório Contemporâneo: quebrando paradigmas para a evolução do serviço notarial e de registro.
Sub-tema: Cartório-Empresa: empreendedorismo e gestão de pessoas.
PALESTRA[1] DO PROF. CARLOS ELIAS[2]

“Os cartórios precisam constantemente se reinventar ou – para lembrar o título deste Congresso em Foz do Iguaçu –quebrar paradigmas, ainda que isso signifique abandono radical de concepções até então consolidadas.
O fluxo do rio nos ensina muito. A pacificidade da corrida das águas é, por vezes, rompida por cascatas vorazes ou até mesmo por violentas cataratas que, apesar de sua explosão, oxigenam as águas para que elas possam seguir estáveis em um novo rumo. A escolha da cidade da Catarata do Iguaçu como lugar para sediar este Congresso Nacional dos Cartórios e para tratar desse tema de “quebra de paradigmas pelos cartórios” talvez tenha, no fundo, um valor simbólico.”

Ideias-chave: Importância dos serviços notariais e de registro. Necessidade de adaptação às mudanças sociais. Identificação de novas necessidades da sociedade e do mercado que podem ser emolduradas em um dos atos-fim dos serviços notariais e de registro (plasticidade). Limites dos atos-meio. Casos especiais: arbitragem, mediação, marketing, descontos, parcelamento de emolumentos, “comissões” por indicação de clientes.

1)             SAUDAÇÕES

-       aos integrantes da mesa;
-       ao presidente da Confederação Nacional de Notários e Registradores – CNR, Dr. Rogério Portugal Bacellar;
-       à ex-presidente da ANOREG/BR, Dra. Léa Emília Braune Portugal
-       aos organizadores, com destaque para a caríssima Sra. Fernanda da ANOREG/DF.
-       a todos os presentes e a outros oficiais que não puderam estar presentes.

2)             IMPORTÂNCIA CONTEMPORÂNEA DOS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO E EXCELÊNCIA INTELECTUAL DOS TITULARES
Os serviços notariais e de registro, popularizado pelo epíteto “Cartórios”, estão entre as instituições mais relevantes do nosso Estado de Direito.
Mais do que simples agentes públicos, os oficiais extrajudiciais foram ungidos pela nossa Constituição para distribuírem a fé pública nos principais atos e fatos jurídicos relevantes aos indivíduos, ao mercado e ao Estado.
O Brasil, em conjunto com inúmeros outros países – como a Alemanha –, tem o privilégio de contar com essa estrutura de certificação dos fatos jurídicos, o que é relevante para prevenir fraudes em negócios, para distribuir cidadania aos indivíduos por meio de documentos de identificação, para viabilizar a cobrança de créditos por caminhos não abusivos, para confortar o espírito dos proprietários de bens ou dos titulares de garantias reais, etc.
No caso, por exemplo, do registro de imóveis, o modelo brasileiro desperta a atenção de outros países. A própria China estava a estudá-lo com vistas a importar esse modelo[3].
Frequentemente, ouvem-se apressados e impensados discursos contrários aos cartórios, imputando-lhe o deslocado insulto de ser um arauto da burocracia, do medievalismo, do subdesenvolvimento e de engorduramento de despesas. Os atabalhoados interlocutores que ressoam esses zunidos chegam a remeter-se ao modelo dos Estados Unidos, defendendo que lá não há cartório de imóveis e que, apesar disso, os negócios imobiliários não sofreriam riscos nem seriam encarecidos com emolumentos.
Trata-se de ruídos que a realidade vêm progressivamente silenciando. Pouco tempo de estudo específico dos sistemas de registros públicos no mundo seriam suficientes para, com um simples sopro, desabar o castelo de baralhos dessas críticas.
Em primeiro lugar, o modelo norte-americano para transações imobiliárias é muito mais caro e inseguro do que o brasileiro. O jurista espanhol José Luiz La Cruz Berdejo, em sua obra “Derecho Inmobiliário Registral – III bis”, faz aprofundado passeio nos sistemas de registro de imóveis existentes no mundo e, ao tratar do sistema norte-americano, esclarece que a falta de certeza da titularidade dos imóveis gera um risco muito grande em qualquer negócio imobiliário, seja os de venda, seja os de oferecimento de garantias reais. A possibilidade de um terceiro reivindicar o imóvel com base em um título mais robusto é séria, ocasionando o indesejado fenômeno da “evicção”. A consequência desse frenesi é que os negócios imobiliários devem ser acompanhados da contratação de onerosos seguros, de maneira que, se vier a ocorrer a evicção, o prejudicado será indenizado pela seguradora. Além disso, há gastos expressivos com a contratação de advogados incumbidos de tentar reduzir os riscos de evicção e de redigir o contrato.
O sistema norte-americano não resiste a um simples teste lógico. É absolutamente despropositada a sua inércia em enfrentar a raiz do problema da insegurança informacional. Prefere-se garantir ao adquirente de um bem o direito a uma indenização securitário em razão da evicção no lugar de combater a fonte dos problemas, que é a falta de certeza da titularidade dos imóveis. Não é racional deixar de combater uma doença para, no lugar disso, fazer um seguro de vida a fim de garantir uma indenização no caso de morte. A evicção é uma morte; causa prejuízos irreparáveis pelo dinheiro a quem a sofreu. Nada indeniza a dor decorrente da perda de um imóvel onde uma família já está confortada.
La Cruz Berdejo não precisou ser textual. A insinuação foi suficiente. O sistema irracional dos EUA baseado em apólices de seguros só se mantém por força do possante lobby das seguradoras.
O sistema brasileiro dos serviços notariais e de registro é menos oneroso e largamente mais seguro, o que é salutar para o ambiente de negócios.
Diante disso, indaga-se: por que havia e, ainda que em estado de obnubilação, ainda há vozes críticas ao sistema cartorial brasileiro?
A resposta desbordaria os limites desta palestra, mas podemos resumi-la aqui.
A atuação coordenada dos titulares de serviços notariais e de registro, migrando de uma postura atomizada para uma visão molecular da sua atividade, é relativamente recente. A preocupação em promover integração, virtualização e eficiência no serviços ganharam amplificação nas últimas décadas.
Ora, os serviços notariais e de registro precisam estar em sincronia com a necessidade da sociedade e do mercado. Eles nasceram a pedido da sociedade. No caso do Registro de Imóveis, por exemplo, o seu embrião foi o Registro Hipotecário fundado pela Lei Orçamentária nº 317/1843, fruto da súplica que o mercado fazia para ter segurança informacional sobre as titularidades dos bens. O povo – de quem todo poder emana – é o excelentíssimo destinatário desses serviços.
As necessidades do mercado e da sociedade mudam, estão em constante movimento. Os cartórios também precisam acompanhar essas mutações, sob pena de os seus usuários passarem a refletirem em outras soluções que, muitas vezes, acabam configurando-se como verdadeiras aberrações ou gambiarras jurídicas que podem comprometer bases fundamentais do Estado de Direito. Os cartórios não podem abandonar a sociedade na sua jornada inexorável de mudanças constantes, deixando-a desamparada diante do “novo”. A estabilidade presume movimento; a permanência das instituições pressupõe que a sua adaptação às modificações sociais e mercantis.
Nesse contexto, quer-nos parecer que figuras como a negativação do nome dos devedores por meio de instituições privadas não se alinham a um dos perfis do Estado de Direito: a monopolização da violência pelo Estado (e os meios coercitivos de cobrança são espécies de exercício de violência). Esses arremedos foram filhos da inércia dos serviços de protestos em adequarem-se à dinâmica das cobranças de crédito. Há também outras instituições a ameaçarem os serviços de registros públicos, assumindo funções de registros de direitos para suprir a orfandade causada pela indiferença de serventias registrais no tempo.
É claro que não se pode deitar a culpa nos ombros dos cartórios, pois, como as suas atividades dependem de suporte legal, é necessário que o legislador esteja com olhar atento no aproveitamento eficiente da estrutura notarial e de registro. Todavia, a atuação molecular dos cartórios no sentido de esclarecer a natureza e a importância de suas atividades é fundamental para combater essas insuficiências normativas.
Os cartórios precisam constantemente se reinventar ou – para lembrar o título deste Congresso em Foz do Iguaçu –quebrar paradigmas, ainda que isso signifique abandono radical de concepções até então consolidadas.
O fluxo do rio nos ensina muito. A pacificidade da corrida das águas é, por vezes, rompida por cascatas vorazes ou até mesmo por violentas cataratas que, apesar de sua explosão, oxigenam as águas para que elas possam seguir estáveis em um novo rumo. A escolha da cidade da Catarata do Iguaçu como lugar para sediar este Congresso Nacional dos Cartórios e para tratar desse tema de “quebra de paradigmas pelos cartórios” talvez tenha, no fundo, um valor simbólico.
E aqui adentramos o ponto nevrálgico de nossa exposição: quais são as margens de manobras de que podem valer-se os serviços notariais e de registro para adaptar-se aos novos reclamos sociais? Os cartórios teriam a mesma elasticidade das empresas? O empreendedorismo e a gestão de pessoas podem ser orquestrados sob o mesmo timbre das atividades empresariais?
A resposta não é cartesiana.
Por serem frutos de delegação do Poder Público e pelo fato de o seu exercício ocorrer de modo privado, os cartórios vacilam entre o regime do Direito Administrativo e o regime da inciativa privada. O art. 236 da Constituição Federal e a Lei nº 8.935/1994 criaram esse ambiente jurídico movediço. A linha divisória é cinzenta e embaça a visão dos juristas e dos profissionais ao se atreverem a delinear as extremidades do campo de manobra das serventias extrajudiciais.
A imprecisão jurídica é mais acentuada do que isso. Lembramos que a própria ciência jurídica é marcada pela imprevisibilidade. Recásens Siches afirmava que a lógica do Direito não é a do racional, e sim a do razoável. Miguel Reale realça que, além de o objeto do direito ser multifário (direito é fato, valor e norma, conforme a teoria tridimensional do direito), o agente que o maneja também é volátil por ser influenciado por sua história, sua experiência e sua cultura (culturalismo jurídico). Mangabeira Unger, como profeta da descrença de uma ciência jurídica cartesiana, chegava a afirmar que direito é, na verdade, política.
Daí que precisamos ter algumas cautelas ao tratarmos da necessidade de os cartórios – peço licença novamente para reportar ao tema deste Congresso – quebrarem “paradigmas para a evolução do serviço notarial e de registro”.
Antes de tudo, em uma simplificação, podemos sistematizar o regime jurídico híbrido dos serviços notariais e de registro da seguinte forma: o ato-fim é regido por Direito Administrativo, ao passo que os atos-meio, por Direito Privado. Detalhemos essa asserção.
3)             ATOS-FIM: TAXATIVIDADE VS PLASTICIDADE
De um lado, os atos-fim da serventia se submetem às normas de Direito Administrativo e, portanto, configuram atos administrativos. A lavratura de uma escritura, o registro ou a averbação de um título, o reconhecimento de firma e outros atos-fim constituem atos administrativos e seguem as regras do Direito Administrativo. Por exemplo, o ato de registro na matrícula de um imóvel é um ato administrativo vinculante, de sorte que, se o título preencher todos os requisitos legais, o oficial é obrigado a praticar o ato.
Outra consequência da natureza de ato administrativo dos atos-fim praticados pelas serventias extrajudiciais é que o oficial não tem liberdade para criar, sem base legal específica, novos atos. O cartório não pode oferecer “produtos” não previstos em lei. Não há uma livre-iniciativa plena aos oficiais. O princípio da legalidade no Direito Administrativo é estrita: tudo é proibido, salvo o permitido em lei. Os atos-fim são taxativos.
Dessa taxatividade não decorre, porém, que o cartório esteja engessado para aumentar o consumo dos produtos disponibilizados, pela lei, nas suas prateleiras da fé pública. A criatividade empreendedora do cartório pode aproveitar as necessidades da sociedade que estejam sem o devido tratamento e que poderiam ser atendidas por meio de um dos produtos dos serviços notariais e de registro. Trata-se da plasticidade que, em diferentes graus, os atos-fim possuem. Alguns possuem plasticidade praticamente zero, como, por exemplo, o registro de nascimento. Outros atos, porém, possuem ampla plasticidade, a exemplo das atas notariais, que vêm sendo progressivamente mais utilizadas para a certificação de fatos com os mais diversos objetivos, especialmente para fins de servir de prova em processo judicial.
Uma outra tentativa de exploração da plasticidade dos atos-fim foi a divulgação feita por alguns cartórios brasileiros no sentido de fazer uma espécie de “carteira de identificação dos animais de estimação dos interessados”. Apesar dessa alcunha, esse produto nada mais era do que um ato de registro de documentos no Cartório de Títulos e Documentos, com a diferença de que, no documento, estariam consignadas as principais informações do animal de estimação e estaria aposta, até mesmo, a dócil imagem do pet.
Outro exemplo é a permissão que o Provimento nº 67, de 26/03/2018, do CNJ, regulamentou a atribuição dos tabelionatos de notas em poderem oferecer serviços de conciliação e de mediação. Aproveitou-se aí da sua competência de lavrar escrituras públicas para, criativamente, autorizá-lo a contribuir na conciliação ou na mediação. Há restrições e detalhamentos no referido provimento, mas se intui que aí se elasteceu criativamente a atribuição dos oficiais em lavrar escrituras públicas.
A exploração da plasticidade dos atos-fim deve ser feita com respeito à lei. Não se pode, porém, admitir que negócios jurídicos nulos passem a ser objeto de atos notariais ou de registro. O oficial extrajudicial, antes de tudo, tem o dever de garantir a profilaxia jurídica dos atos jurídicos. Deve ele ter a postura de negar, por exemplo, lavrar uma escritura pública quando, à luz da legislação, houver alguma nulidade.
Pode-se questionar se o oficial extrajudicial, com interesses meramente lucrativos, poderia ter uma tendência espúria em flexibilizar a interpretação jurídica ou em fazer vistas grossas com o objetivo de maximizar a quantidade de atos praticados. Essa suspeita, porém, é descabida em razão da própria estrutura de funcionamento dos serviços notariais e de registro. Além de os titulares extrajudiciais serem selecionados mediante concurso público, eles são agentes públicos sujeitos a fiscalizações constantes do Poder Judiciário e vulneráveis ao duro ambiente sancionador do Direito Administrativo envolvendo ações de improbidade administrativa e crimes contra a Administração Pública. O oficial extrajudicial é imparcial. Abusos e exceções, evidentemente, sempre haverá, como, de resto, há em qualquer categoria de agente público. Todavia, conforme o Ministro Ayres Brito reiteradamente afirmava nas sessões do Supremo Tribunal Federal, “não podemos proibir o uso presumindo o abuso”.
Portanto, diante da taxatividade dos atos-fim dos serviços notariais e de registro, cumpre-lhes explorar a plasticidade desses atos, valendo-se da criatividade para, dentro da lei, passar a deitar a tinta da fé pública sobre necessidades sociais ou mercantis até então desguarnecidas.
Além do mais, evidentemente, o legislador pode ampliar a competência dos serviços notariais e de registro, criando, por lei, novos atos típicos a serem praticados pelos serviços notariais e de registro.

4)             ATOS-MEIO: uma liberdade empreendedora com limites
De outro lado, os atos-meio não podem ser considerados atos administrativos. São atos meramente privados. Os contratos celebrados pelo oficial para o funcionamento das serventias, como os de locação do imóvel da sede, os contratações de escreventes, as aquisições de materiais de expediente etc., são atos meramente privados, sem caráter privado.
Daí por que é totalmente descabido transportar para esse âmbito amarras próprias do regime de Direito Administrativo, como a proibição de nepotismo, a obrigatoriedade de licitação, a extensão do teto remuneratório do funcionalismo público para os rendimentos do titular[4] etc.
Vige, nessa seara de direito privado, o princípio da legalidade ampla: tudo é permitido, salvo o proibido em lei.
O que causa, porém, certa confusão é definir o que a lei proíbe nesse âmbito. A entropia se acentua em saber se, para esse efeito, temos de admitir ou não proibições implícitas da lei, assim entendidas aquelas que, embora não tenham previsão textual, são inferidas da lei ou de princípios.
O tema não comporta respostas apodíticas. A complexidade do casuísmo frustra a busca por certezas. Como lembra Boaventura de Souza Santos, vivemos em um mundo de perguntas fortes e de respostas fracas.
É preciso, porém, tomarmos uma decisão, pois a segurança jurídica é um pilar do Estado de Direito. Decisões devem ser tomadas com audácia, ainda que posteriormente surjam elementos que recomendem mudança de entendimento. O risco de errar também é o risco de acertar.
Especificamente nos casos dos serviços notariais e de registro, entendemos que os atos-meio podem ser censurados não apenas por leis textualmente expressas, mas também por inferências implícitas de leis ou de princípios. Essa inferência tem de ser inequívoca e excepcional; não se pode banalizar.
O Poder Judiciário, em regra, tem competência para fiscalizar não apenas os atos-fim, mas também os atos-meio, para garantir a regularidade operacional da serventia[5]. Todavia, é preciso definir os limites da competência fiscalizadora dos atos-meio. O Poder Judiciário, por exemplo, evidentemente não pode censurar opções de compras de material expediente, determinando, porém, a compra de canetas de uma outra marca. Ele pode, porém, censurar que as grafias feitas a caneta constantes dos papéis padeçam de ininteligibilidade e determinar que o oficial resolva esse problema.
Convém explorar alguns casos.
5)             CASO DO MARKETING
Um primeiro caso diz respeito aos limites de marketing das serventias. Inexiste previsão textual na legislação federal impondo limites publicitários aos serviços notariais e de registro. Daí se reconhecer que as serventias podem divulgar os seus serviços com o objetivo de aumentar a quantidade de usuários dos seus serviços. Esse direito de divulgação, porém, tem limites. Entendemos que o limite é a vedação ao abuso de direito, condenado pelo art. 187 do Código Civil. Considera-se abuso de direito o exercício do direito além dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, pela função social e pela finalidade econômica. O conceito de abuso de direito é muito aberto, de modo que, para a sua configuração, é preciso analisar a natureza e o contexto do direito. Além do mais, também é possível inferir que, como é dever do oficial “proceder de forma a dignificar a função exercida” (inciso V do art. 29 da LNR) e como é infração disciplinar adotar “conduta atentatória às instituições notariais e de registro” (art. 31, II, da LNR), é implícito que os meios de marketing não podem ser banais.
Como se sabe, os serviços extrajudiciais consistem em serviço público exercido por particular por meio de delegação do Poder Público, de maneira que o direito de marketing do particular deve coadunar com a discrição dos serviços públicos e com o respeito ao sistema de viabilidade econômica do regime concorrencial das delegações. Assim, quando se tratar de especialidades extrajudiciais sujeitas a competição entre si diante da falta de delimitação territorial de sua competência, extravagâncias publicitárias de uma serventia pode ocasionar a captação abusiva de clientela das outras serventias, comprometendo a própria viabilidade financeira destas e prejudicando a população, que precisa de serventias próximas de sua residência. A concorrência predatória entre as serventias é nociva ao sistema de delegação. Ao se cuidar, porém, de especialidades extrajudiciais sem potenciais conflitos concorrenciais diante das restrições territoriais de sua competência, a tolerância com técnicas de marketing parecem ser mais adequadas por dificilmente configurarem abuso de direito.
A subjetividade inerente ao conceito jurídico indeterminado de “abuso de direito” inevitavelmente causará divergências de interpretações entre os Estados, conforme a interpretação adotada pela Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal local. A divergência só seria eliminada com a intervenção uniformizadora por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
De qualquer forma, no Distrito Federal, por exemplo, a Corregedoria-Geral de Justiça[6] posiciona-se no sentido de proibir marketing não discretos e com forte apelo de captação de clientes. Propagandas publicitárias feitas com sobriedade, com fins informativos e sem fortes apelos de captação de clientela é admitida na internet (redes sociais, e-mails etc.). É vedado, porém, propagandas por placas, banners, outdoors, anúncios em meio de radiodifusão (rádio, TV, rádio etc.) ou outro meio não razoável. É proibido também marketing por meio de patrocínios feitos em troca da divulgação da marca.
Ao nosso sentir, a Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça da capital federal (TJDFT) adotou postura adequada, podando abusos de direito de marketing pelas serventias.
Por fim, não enxergamos restrições em que as associações dos oficiais promovam marketing dos serviços notariais e de registro, valendo-se dos meios que lhes aprouver, pois a associação é entidade privada imune a fiscalização do Poder Judiciário.
6)             CONCESSÃO DE DESCONTOS E PARCELAMENTOS
Outro problema é definir se os cartórios podem conceder descontos ou parcelamento nos emolumentos.
Não há texto legal expresso a propósito, mas a disciplina legal dos emolumentos, que são tributos e que são previstos em lei, deixa a forte inferência de que o desconto é proibido. Além do mais, é implícita a vedação de descontos na obrigação de “observar os emolumentos fixados para a prática dos atos”, conforme o inciso VIII do art. 30 da LNR. Há relativo consenso sobre essa proibição da concessão de descontos.
A controvérsia, porém, fica para a possibilidade de permitir que o usuário faça o pagamento parcelado dos emolumentos. A rigor, sob uma ótica econômica, o parcelamento de uma dívida é uma espécie de desconto indireto se não forem cobrados juros remuneratórios. Todavia, sob um juízo de razoabilidade, o parcelamento do pagamento dos emolumentos é salutar para o usuário, pois o estimulará a levar o seu ato à formalidade dos serviços notariais e de registro.
Provocada pela Anoreg/DF, a Corregedoria-Geral de Justiça do TJDFT enfrentou essa questão e, acolhendo sugestões da própria Anoreg/DF, passou a autorizar os cartórios a aceitarem, se quiserem, o pagamento dos emolumentos de modo parcelado, mas, para evitar eventuais concorrências predatórias entre as especialidades, impôs o seguinte limite: para as serventias em regime de concorrência por falta de delimitação territorial de competência (como o tabelionato de notas), só se admitem 3 parcelas; para as demais serventias, não há limites. Os cartórios, de qualquer sorte, só podem aceitar esse parcelamento por meio de pagamento em cartão de crédito e jamais poderão repassar aos usuários as tarifas cobranças pelas administradoras de cartão de crédito.
Seja como for, nos Estados em que o oficial tem a obrigação de fazer repasses de parcela dos emolumentos para outras instituições (como para fundos vinculados ao Poder Judiciário), o oficial não poderá parcelar o repasse por falta de previsão legal.
7)             CONTRATAÇÃO DE “CORRETORES” PARA CAPTAÇÃO DE CLIENTES
Outro aspecto é saber se o oficial pode contratar “corretores” que, não sendo funcionários da serventia, incumba-se de buscar clientes para a serventia em troca de uma “comissão” ou de uma “taxa de indicação”.
O tema é controverso por inexistir proibição textual expressa. Todavia, entendemos que, por inferência da legislação, essa postura não parece adequada com a dignidade dos serviços públicos quando se tratar de serventias sujeitas a regime de concorrência, pois pode gerar desigualdades. Não enxergamos, porém, problema nessa prática em serventias não submetidas a regime concorrencial, como os Registros de Imóveis, pois a captação de clientes por meio de comissões não está a prejudicar terceiros e, ainda por cima, está a estimular os indivíduos à formalidade.
No Distrito Federal, a Corregedoria proibiu expressamente o pagamento de qualquer “comissão, corretagem, taxa de intermediação ou afim a qualquer agente que não integre o corpo de empregados do cartório”[7]. E fê-lo mediante provocação da Anoreg/DF. Não houve a distinção entre serventias, como defendemos acima. A vedação é para todos os serviços extrajudiciais.
Desse modo, é indevido que, por exemplo, o oficial dê um “trocado” para o corretor de imóveis que induzem os seus clientes a lavrarem a escritura de venda de imóveis na serventia. Seria também indevido que o oficial, ao menos, ressarça as despesas de locomoção do corretor (gasolina etc.) até a serventia.

8)             QUESTÕES RELACIONADAS ÀS DESPESAS DA SERVENTIA E AOS TRIBUTOS
Outro aspecto a ser analisado é se, no exercício do poder de fiscalização, o Poder Judiciário pode controlar e fiscalizar as despesas operacionais da serventia, a regularidade do recolhimento dos tributos etc.
Tem-se notícia de casos em que a equipe de correição já chegou a, no relatório correcional, indigitar, como irregular, a inclusão de despesas havidas com a aquisição de lâmpadas entre as despesas dedutíveis da base de cálculo do Imposto de Renda do oficial, sob o argumento de que lâmpadas não eram essenciais para a atividade e, portanto, deveriam incorporar a base de cálculo do Imposto de Renda. Nesse caso, a serventia impugnou o relatório, alegando que faltaria competência à equipe correcional para esse tipo de juízo e que lâmpadas eram sim essenciais para a serventia. A Corregedoria local reconsiderou a posição da equipe correcional.
Trata-se aqui de outro caso para o qual não há lei textualmente impondo restrições aos atos-meio do oficial extrajudicial, de modo que a discussão gira em torno da possibilidade de inferir que a legislação implicitamente impõe restrições ao oficial na sua gestão administrativa.
A interpretação que vem prevalecendo no âmbito das Corregedorias é a de que a saúde financeira das serventias deve ser fiscalizada pelo Poder Judiciário, pois irregularidades financeiras podem comprometer a qualidade do serviço prestado ao cidadão. Sob o comando da Corregedoria Nacional de Justiça (um órgão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ), foi realizado o I Encontro de Corregedores do Serviço do Extrajudicial ocorrido em 7 de dezembro de 2017 em Brasília e, entre as metas que foram fixadas para ser cumpridas até junho de 2018, está a seguinte: “realizar fiscalização contábil, financeira, trabalhista e tributária nos serviços extrajudiciais”[8].
Entendemos, porém, que isso não autoriza que o Poder Judiciário intervenha na discricionariedade que tem o oficial de escolher com que gastar ou quando gastar, salvo quando for constatada falta de condições adequadas na estrutura da serventia, ou seja, quando se constatar situação tendente à insolvência. Corregedoria não é consultoria financeira. Todavia, no caso de potencial insolvência do oficial por conta de desastrada gestão financeira da serventia, a Corregedoria pode intervir. Afinal de contas, o Estado pode ser responsabilizado por danos causados a terceiros pelo oficial na hipótese de insolvência deste (responsabilidade subsidiária).
Entendemos, também, que não compete ao Poder Judiciário realizar discussões detalhadas acerca do modo de recolhimento de tributos pessoais do oficial – como o Imposto de Renda –, pois isso decorre de relação pessoal entre o oficial e o Fisco. Todavia, o Poder Judiciário pode, ao menos, fiscalizar se o oficial está a recolher tributos oriundos da sua serventia sem vínculo estritamente pessoal, a exemplo das contribuições sociais dos empregados, especialmente porque há o risco de o Estado ser subsidiariamente responsabilizado por essas dívidas.

9)             CASO DA ARBITRAGEM NOS CARTÓRIOS DE NOTAS
Consideramos injustificável que a legislação, até o presente momento, não tenha permitido que os cartórios de notas exerçam função de arbitragem. Embora entendamos que nem mesmo haveria necessidade de lei específica para que os cartórios de notas exercessem a função de árbitro, pois eles já devem orientar juridicamente as partes e lavrar escrituras públicas diante do consenso dos interessados (e a arbitragem pressupõe escolha consensual do árbitro), convém a edição de uma lei específica. E há inúmeros motivos para isso.
Em primeiro lugar, a arbitragem é fruto da escolha dos litigantes, que podem escolher qualquer pessoa para ser árbitro.
Em segundo lugar, o tabelião é um profissional do Direito, conforme a Lei nº 8.935/1994, aprovado em concurso público de elevado nível, e é um agente público fiscalizado continuamente pelo Poder Judiciário, de maneira que a sua imparcialidade o tornaria uma formidável opção de árbitro para os indivíduos.
Em terceiro lugar, é urgente a necessidade de estimular a desjudicialização diante do afogamento do Poder Judiciário. É fato notório que, em 1988, cerca de 350 mil ações judiciais havia sido protocoladas e, nessa época, o Brasil tinha cerca de 5 mil juízes. Todavia, em 2009, cerca de 25 milhões de ações foram protocoladas, enquanto a quantidade de juízes subiu timidamente para apenas 20 mil juízes. Não há juízes suficientes para resolver as demandas em tempo útil.
Em quarto lugar, ninguém pode negar: a resolução dos processos judiciais demoram anos e anos na realidade brasileira.
Em quinto lugar, os meios extrajudiciais devem ser estimulados, como a conciliação, a mediação e também a arbitragem. Isso é lição que já constava nas antigas Ordenações Filipinas, de 1603, que, no seu Livro III, Título XX, par 1, dispunha o seguinte:
"E no começo da demanda dirá o juiz a ambas as partes, que antes que façam despesas, e se sigam entre elas ódio e dissensões, se devem concordar, e não gastar suas fazendas por seguirem suas vontades, porque o vencimento da causa sempre é duvidoso [é imprevisível o que o juiz decidirá]".

Em sexto lugar, é consabido que o nível técnico-intelectual dos titulares dos serviços notariais e de registro atualmente é elevadíssimo, formando uma constelação de jurista com formação acadêmica invejável e com histórico profissional de destaque. Entre os titulares, há inúmeros professores universitários, doutrinadores, ex-ocupantes de cargos públicos relevantíssimos (até mesmo dos cargos jurídicos mais tradicionais e prestigiados, como os da magistratura e do Ministério Público). Não há motivo para haver sequer uma centelha de suspeita acerca da aptidão intelectual dos titulares para assumir funções jurídicas relevantes para a sociedade, como é a de ser uma alternativa de arbitragem para a população.
Em sétimo lugar, um passeio de Direito Comparado deixa-nos desconcertados. Os notários costumam ser admitidos como árbitros em outros países, como em Portugal.
É injustificável que os cartórios de notas brasileiros, até o presente momento, não estejam a oferecer serviços de arbitragem para a população.
10)          CONSIDERAÇÕES FINAIS E A QUESTÃO DA DÚVIDA JURÍDICA RAZOÁVEL COMO EQUILÍBRIO PARA SITUAÇÕES CINZENTAS
Os oficiais extrajudiciais estão sujeitos a um regime jurídico híbrido envolvendo Direito Administrativo e Direito Privado. Embora, em regra, os atos-fim sejam sujeitos ao Direito Administrativo e os atos-meio, ao Direito Privado, há exceções a essa regra, de maneira que, com suporte legal expresso ou implícito, os atos-meio sofrem limitações e podem ser fiscalizados pelo Poder Judiciário.
O empreendorismo do oficial em inovar, “quebrando paradigmas”, tem de conciliar a sua audácia com a prudência em não desbordar dos limites legais, sob pena de expor-se a inconveniências e a constrangimentos disciplinares.
Como a linha demarcatória do campo de manobra dos oficiais é trôpega e cinzenta, entendemos que os oficiais, ao se depararem com soluções de duvidosa juridicidade, devem dar preferência a adotar posturas que contem com o consenso razoável da classe, o que pode ser obtido em deliberações ocorridas no âmbito das associações de classe. Isso, porque a interpretação coletiva ganha mais força hermenêutica. Não se trata, porém, de uma regra, mas de uma mera recomendação.
Em inúmeros casos, a proposta de inovação de um oficial não convém ser chancelada pelo seu órgão de classe por se tratar de questão extremamente peculiar da serventia ou pelo fato de a associação não poder transformar-se em censor dos seus associados. Nesses casos, entendemos que o oficial deva sim adotar postura ousada e adotar a interpretação que reputar mais conveniente.
Se, posteriormente, a sua interpretação vier a ser atacada pelo Poder Judiciário, consideramos que será indevido punir disciplinarmente o oficial inovador, especialmente se a sua interpretação era razoável. Conforme já tivemos a oportunidade de defender em outra ocasião[9], a dúvida jurídica razoável deve excluir a ilicitude do ato e recomendar a modulação dos efeitos da decisão posterior para casos futuros (efeitos ex nunc). Isso é reforçado pela Lei nº 13.655/2018, que, modificando a LINDB, ratificou isso e chegou a determinar a modulação dos efeitos da interpretação no art. 24 da LINDB.






[1] Este texto resume os principais temas abordados pelo palestrante na palestra. Todavia, como a palestra não foi fruto de leitura, o discurso proferido verbalmente assumiu vida própria, embora tenha encerrado, de um modo geral, as ideias deste texto.
[2] Doutorando, mestre e bacharel em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduado em Direito Notarial e de Registro. Pós-graduado em Direito Público. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. Advogado. Ex-membro da Advocacia-Geral da União. Ex-assessor de ministro do STJ.
[4] Ressalva-se que, para os interinos, o Conselho Nacional de Justiça entendeu ser necessário aplicar o teto do funcionalismo publico para o rendimento deles, o que é um despropósito. O interino, apesar de exercer a delegação em regime privado, assumindo obrigações em seu próprio nome e estando exposto a indenizações elevadas por eventuais prejuízos causados a terceiros, recebe a remuneração maxima de que um servidor publico aufere.

[5] A propósito, o STF chancel essa amplitude das correições feitas sobre as serventias extrajudiciais (RE 255124, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 08/11/2002).
[6] PA nº 0020374/2017 (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios).

[7] PA nº 0020374/2017 (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios).












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