sexta-feira, 13 de março de 2020

A vida privada, a teoria dos círculos concêntricos da esfera privada e o caso das pessoas públicas

    

A vida privada, a teoria dos círculos concêntricos da esfera privada e o caso das pessoas públicas



Carlos Eduardo Elias de Oliveira

(Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB –, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições.
Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.
Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro
E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br)
 Data: 13 de março de 2020


1.   Vida privada como direito da personalidade: a teoria dos círculos concêntricos

1.1.       Definição e importância prática

A vida privada é um direito da personalidade e está protegida pelo art. 5º, X, da CF (que reputa invioláveis a intimidade e a “vida privada”) e por diplomas internacionais, como o art. 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos (que assegura o direito à vida privada). O conceito de vida privada é amplo e acaba abrangendo inúmeros outros direitos da personalidade, como a imagem, a honra etc.
Sobre ela, há a “teoria dos círculos concêntricos da esfera privada da vida privada”, também chamada de “teoria das esferas da personalidade”, de “teoria das três esferas” ou de “teoria dos três graus”. Essa teoria foi desenvolvida na Alemanha desde a década de 50, especialmente pelas mãos dos juristas Heinrich Hubmann (que tratou em um congresso jurídico ocorrido na Alemanha em 1953[1]) e Heinrich Henkel (que cuidou posteriormente do tema em cerca de 1957).
Essa teoria estabelece que a vida privada da pessoa pode ser dividida em três esferas sobrepostas: a esfera secreta (a esfera do segredo, que é mais interna), a esfera íntima (a esfera da intimidade, que é a intermediária) e a esfera privada (a esfera da privacidade, que é o círculo mais externo). A figura abaixo retrata a ideia[2]:




Os dois juristas alemães divergem apenas sobre os círculos intermediários e mais internos: H. Henkel segue essa ordem retromencionada, ao passo que H. Hubmann prefere colocar o segredo como uma esfera intermediária e a intimidade como a esfera mais próxima. No Brasil, a doutrina majoritária segue a posição de H. Henkel, com adesão dos civilistas brasileiros Flávio Tartuce, Pablo Stolze Gagliano e Silmara Chinelato[3]. Também reputamos mais oportuno essa linha majoritária, colocando o segredo no mais profundo da vida privada.
Quanto mais interna for a esfera, mais sensível ela é. A consequência prática é que o grau de tutela da vida privada deve ser mais intenso para a esfera do “segredo” do que para a esfera da “intimidade” e da “privacidade”. As leis devem ser mais rigorosas contra violações à esfera do segredo do que contra violações às duas outras esferas. Quanto mais sensível for a agressão à vida privada, maior deve ser a repressão jurídica e maior deve ser o valor da indenização por dano moral. Por exemplo, o valor da indenização por dano moral tem de ser maior para um caso de divulgação não consentida de cenas de nudez de uma pessoa (que está na esfera do segredo) em relação à publicação não consentida de fotos de uma pessoa em um momento familiar em sua casa (esfera da intimidade).
A distinção entre as três esferas não é cartesiana. A linha divisória é tênue e cinzenta, de modo que pode haver divergências no enquadramento de cada caso concreto. Além disso, o âmbito de alcance desses conceitos pode variar a depender da cultura, da religião, da política e do momento histórico de cada sociedade.
Privacidade diz respeito ao círculo da vida privada que envolve as relações mais superficiais pelo fato de um sujeito não ter reduzido grau de conhecimento da vida alheia. É a esfera própria do “coleguismo”. Nessa esfera, está, por exemplo, o sigilo de dados telefônicos (das relações das ligações efetuadas e recebidas), o qual pode ser quebrado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ou pelo Judiciário.
Intimidade é a esfera da vida privada que envolve as relações mais íntimas que garantem o compartilhamento de informações em ambiente familiar. É a esfera dos familiares, dos amigos íntimos ou dos profissionais que têm acesso a informações por conta de seu ofício (como padres e advogados). O sigilo domiciliar, profissional e das comunicações telefônicas (o conteúdo de cada conversa telefônica) se encaixa nessa esfera. A tutela desses sigilos é mais acentuada, do que dá exemplo o fato de que o sigilo das comunicações telefônicas não pode ser quebrada por uma CPI, mas só pelo Judiciário com as restrições legalmente cabíveis.
Segredo é a esfera das informações tão pessoais que não costumam ser compartilhadas com ninguém, nem mesmo com familiares. Essas informações até podem ser compartilhadas a depender da pessoa, mas, por sua natureza extremamente pessoal, não costuma ser publicizada. Por isso, é chamada de esfera do segredo. Nessa seara, não se deve admitir violação alguma, nem mesmo por motivos de ordem pública. Aí estão as opções individuais envolvendo sexualidade, convicção religiosa etc. A prática, por exemplo, do porn revenge (pornografia de vingança), por meio do qual um ex-consorte divulga imagens de nudez do outro como retaliação pelo rompimento de um relacionamento, configura uma vulneração à esfera do segredo, o que justifica a pesada repressão dada pelo Direito, de que é exemplo a criminalização dessa conduta pelo art. 218-C do Código Penal (fruto da Lei nº 13.718/2018).
Fatos da pessoa disponíveis ao público em geral sem restrições fogem ao conceito de vida privada e enquadram-se no de vida pública, para o qual a tutela do direito é de menor rigor.

1.2.         Situação da pessoa pública: o caso da “Princesa Caroline de Mônaco”

Uma interessante aplicação da teoria dos círculos concêntricos é o caso da “Princesa Caroline de Mônaco”. Essa pessoa pública foi fotografada por paparazzi em momento privado de suas férias, andando a cavalo, brincando com seus filhos, jantando com um ator em um restaurante, realizando compras, jogando tênis e divertindo-se na praia com roupa de banho. A Corte Europeia de Direitos Humanos entendeu que a publicação dessas fotos por tabloides sensacionalistas sem consentimento violava o direito à vida privada, ainda que tenham sido tiradas em locais públicos. O argumento é o de que uma coisa é a fotografar a princesa em atividades oficiais na condição de figura pública; outra coisa é fotografá-la em momento privado de férias com a família. Com isso, a Corte Europeia de Direitos Humanos reviu o julgado do Tribunal Constitucional da Alemanha, que só havia censurado a publicação das fotos em que a princesa aparecia com as crianças (em nome da proteção das crianças) ou as fotos sacadas do jantar ocorrido com um ator em um local privado. A Corte alemã havia entendido que pessoas públicas, como a princesa, deveriam tolerar fotos sacadas em locais públicos[4].
Em suma, segundo a Corte Europeia de Direitos Humanos, mesmo pessoas públicas têm direito à proteção da sua vida privada. Entendemos razoável a posição dessa corte internacional, mas ressalvamos que, ao nosso aviso, é sempre preciso examinar o caso concreto diante do fato de que pessoas públicas, especialmente as que influenciam as pessoas, precisam, em certas hipóteses excepcionais, tolerar algumas invasões de privacidade em suas aparições públicas.




[1] Em 1970, Paulo José Costa Jr. publicou, no Brasil, a obra “O direito de estar só: tutela penal da intimidade” e tratou da teoria dos círculos concêntricos (PICHININ, Antonella Mazzine; SCHORR, Janaína Soares. A fantasia da vida privada e a da vida pública na era moderna. In: VI Mostra de Trabalhos Jurídicos Científicos, outubro de 2018, p. 195 (Disponível em: http://san.uri.br/sites/site_novo/wp-content/uploads/2018/10/VImostradetrabalhoscientificos_anais_2018_2910.pdf).

[2] Figura extraída do excelente artigo de Caroline Rossoni e Iuri Bolesina (ROSSONI, Caroline; BOLESINA, Iuri. A teoria dos círculos concêntricos e a proteção à vida privada: análise ao caso Von Honnover vs Alemanha, julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos. Disponível em: https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/download/11672/1502. Ano de elaboração: 2014).

[3] Há corrente minoritária, com respeitados doutrinadores, como Cristiano Chaves, que segue a versão de H. Hubmann, a qual foi importada para o Brasil por Elimar Szaniawski, conforme dá notícia o jurista Bruno Henrique Di Fiore em excelente artigo sobre o assunto (FIORE, 2012).
[4] ROSSONI, Caroline; BOLESINA, Iuri. A teoria dos círculos concêntricos e a proteção à vida privada: análise ao caso Von Honnover vs Alemanha, julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos. Disponível em: https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/download/11672/1502. Ano de elaboração: 2014(FIORE, Bruno Henrique Di Fiore. Teoria dos Círculos Concêntricos da vida privada e suas repercussões na praxe jurídica. Disponível em:http://www.justocantins.com.br/artigos-10689-teoria-dos-circulos-concentricos-da-vida-privada-e-suas-repercussoes-na-praxe-juridica.html. Publicado em 3 de agosto de 2012).

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